Revisão Constitucional: desnecessária e inoperante
Novo Jornal de Cabo Verde, Nov 1995
Revisão Constitucional: Desnecessária e Inoperante
Humberto Cardoso
Novo Jornal de Cabo Verde Nov/1955
A escassas semanas da data marcada para as eleições legislativas, o processo eleitoral parece encontrar-se num impasse.
A Lei Eleitoral (Lei 116/IV/94), que regula o processo, foi aprovada a 17 de Dezembro de 1994 pela Assembleia Nacional e promulgada pelo Presidente da República a 30 de Dezembro do mesmo ano. A sua publicação no Boletim Oficial, porém, só viria a verificar-se em Março de 1995. A entrada tardia em vigor da Lei Eleitoral 116/IV/94 implicou num possível incumprimento da norma constitucional que proíbe alterações na lei eleitoral em ano de eleições.
Essa norma, artigo 102 da Constituição, estabelece que a partir do ano anterior à realização de eleições e até ao apuramento dos resultados, a respectiva lei eleitoral não pode ser alterada ou revogada. A entrada em vigôr da Lei 116/IV/94 em Março/Abril de 1995, ultrapassando, portanto, o prazo constitucional, estabelecido pelo artigo 102, aparentemente, torna impossível a sua aplicação nos procedimentos eleitorais que se avizinham.
Entretanto, o processo eleitoral encontra-se em andamento: nomeou-se uma Comissão Nacional de Eleições que merece o consenso das forças políticas; realizou-se o recenseamento eleitoral que, não obstante algumas dificuldades, conseguiu resultados acima dos previstos; o Presidente da República, depois de reunir o Conselho da República, marcou as eleições legislativas para 17 de Dezembro de 1995 e as eleições presidenciais para 18 de Fevereiro de 1996; e a Comissão Nacional de Eleições já publicou o calendário eleitoral. O problema que se põe é o prosseguimento do processo, visto que irregularidades que, alegadamente, o enformam, particularmente no que concerna à aplicação da Lei Eleitoral, vêm sendo expostas na comunicação social e em declarações públicas de individualidades e partidos políticos.
A suspeita inconfirmidade plena da Lei Eleitoral (116/IV/94) com o artigo 102 da Constiuição põe o sistema político e as forças políticas perante alternativas, nenhuma delas apontando uma saída clara e sem obstáculos do impasse:
Alternativa A. A realização das eleições de 1995/96 de acordo com os procedimentos previstos pela lei eleitoral de 1990. Essa lei não teria sido revogada pela Lei Eleitoral 116/IV/94 por virtude da sua publicação em ano de eleições, o que é explicitamente proibido pela norma constituicional constante do artigo 102 da Constituição. Esta via de solução do impasse apresenta dificuldades intransponíveis, nomeadamente: 1- a Lei Eleitoral de 1990 contem normas definitivsamente incostitucionais à luz da Constituição de 1992; 2- a sua adopção destruiria o consenso, chegado em Dezembro de 1994, entre as forças políticas quanto a divisão do país em círculos eleitorais; 3- a sua aplicação provocaria uma mudança radical da estratégia das forças políticas, a poucos dias do início da campanha eleitoral.
Alternativa B. Mudar a data da realização das eleições legislativas e presidenciais para o ano de 1996. Esta via traria dificuldades aos partidos políticos concorrentes em termos dos compromissos assumidos, dos recursos já disponibilizados para a campanha eleitoral, da confusão que, potencialmente, poderia gerar no eleitorado e do reescalonamento das eleições autárquicas, com todas as consequências daí derivadas. Além disso, a mudança de datas das eleições estaria condicionada a determinações constitucionais incontornáveis, quanto à duração dos mandatos dos órgãos de poder político.
Alternativa C: Prosseguir com o processo eleitoral na base da Lei Eleitoral 116/IV/94. Seguindo esta via salvar-se-iam as estratégias eleitorais já definidas pelos partidos e o esforço dispendido em implementa-las, mas o país sujeitar-se-ia aos custos, políticos e outros, de uma eventual impugnação futura das eleições por qualquer cidadão ou força política.
O impasse para o sistema político, que isto representa, ironicamente, não foi causado por nenhuma acção de manipulação ou de fraude, mas sim por um caso tão fortuito como a publicação tardia de uma lei no Boletim Oficial. A publicação das leis no Boletim Oficial, uma exigência constitucional, que na nossa Constituição é penalizada com a inexistência jurídica da lei (artigo 292 da Constittuição), tem como finalidade evitar a existência de leis secretas, a que os cidadãos não teriam conhecimento, mas que o Estado poderia utilizar para legitimar acções de perseguição ou de penalização.
Para o professor doutor Gomes Canotilho na sua obra “Direito Constitucional” (pg 780) “a publicação é o acto mediante o qual os actos normativos são levados ao conhecimento dos seus destinários”. Acrescenta ainda que “costuma-se considerar a publicação, sob o ponto de vista jurídico, como um acto de comunicação e, portanto, como um requisito de eficácia do acto (acto de integração necessária) e não como um elemento de validação do mesmo”. Contrapondo as sanções ineficácia e inexistência jurídicas em caso de falta de publicação, Gomes Canotilho diz que a sanção mais leve de ineficácia jurídica radica-se “no facto de as leis começarem a produzir efeitos desde a sua aprovação (necessidade de promulgação, assinatura, referenda, etc), enquanto que a sanção de inexistência justifica-se pelo facto de “só a partir da publicação a lei adquire efeitos externos, vinculando todas as entidades, públicas e privadas”.
Pesando estes argumentos no caso concreto da Lei Eleitoral 116/IV/94 note-se que, primeiro, não se trata aqui de leis secretas mas sim de uma lei aprovada por unanimidade num parlamento pluralista; segundo, que o procedimento legislativo até a lei ser considerada perfeita (fase de inciativa - projecto de lei , fase construtiva - deliberação e aprovação na AN, e a fase de controle - promulgação pelo Presidente da República) foram absolutamente correctos e atempados,. verificando-se atrasos de ordem administrativa somente na fase de integração de eficácia; terceiro, que para as forças políticas, com assento ou não no parlamento, a modelagem da estratégia eleitoral, a partir da aprovação da Lei Eleitoral 116/IV/94 no parlamento, seguiu os parâmetros aí definidos, facto que todos são unânimes em afirmar. Portanto, o que a norma constitucional, constante do artigo 102 da Constituição, procura impedir - a manipulação das leis eleitorais a favor de uma ou mais forças políticas - não se aplica neste caso.
Quer dizer, que a aplicação da sanção de inexistência jurídica no prazo que decorreu entre a promulgação do Presidente da República, datada de 30 de Dezembro de 1994, e a data de entrada em vigôr, Março/Abril de 1995, por falta de eficácia externa, embora formalmente correcta, não tem significado concreto para a sociedade e para as forças políticas: No periodo entre a promulgação e a publicação no B.O., em que a Lei Eleitoral 116/IV/94 não tinha existência jurídica, todas as forças políticas estavam a modelar o seu comportamento e as suas acções, presentes e futuras, de acordo com as normas nela estabelecidas. Menos racional parece, ainda, acrescer à pena de inexistência jurídica da Lei Eleitoral no periodo referido a sanção de inconformidade constitucional, por não respeitar os prazos que precavêm contra a manipulação das eleições. Isso, como se o acto de perfeição da Lei eleitoral se tivesse verificado não em Dezembro de 94, mas sim em Março/Abril de 1995.
A inconstitucionalidade puramente formal que tal decàlage parece implicar tem custos enormes para o sistema político.É precavendo contra tais situações de excessivos custos, derivados de uma interpretação demasiado formal da Constituição, que o legislador constituinte facultou ao Supremo Tribunal de Justiça, enquanto órgão de fiscalização da constitucionalidade, a possibilidade de ajuizar do alcance dos efeitos em caso de declaração da inconstitucionalidade. O n. 4 do artigo 308 da Constituição é claro a esse respeito: No caso referido ns. 1 e 2, quando razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público de excepcional relevo, devidamente fundamentado o exigirem, poderá o Supremo Tribunal de Justiça fixar efeitos de alcance mais restrito do que os previstos nos ns 2 e 3.
Uma possível via para ultrapassar o presente impasse seria, portanto, a interposição de recurso de partes interessadas, nomeadamente titulares de orgãos de soberania e partidos políticos, para o Supremo Tribunal de Justiça para verificação dos actos, tais como a nomeação da Comissão Nacional de Eleições, o recenseamento eleitoral, os decretos presidencias que marcam as eleições legislativas e presidenciais, e o calendário eleitoral, que são baseados na Lei Eleitoral 116/IV/94. Estamos crentes que o STJ, enquanto Tribunal Constitucional, encontraria vias para atenuar o efeito de actos fortuitos e despidos de significado político - a publicação tardia de um diploma - sobre um processo essencial à democracia, que é a legitimização do poder político através de eleições livres e plurais.
A não conformação da Lei Eleitoral 116/IV/94 com o princípio defendido pelo artigo 102 da Constituição não é, contudo, pacífica. A aprovação da Constituição da Segunda República tornou inconstitucional um conjunto normas contidas na lei eleitoral de 1990, tornando-a completamente inefectiva. A introdução de uma nova ordem constitucional impõe a tomada de medidas legislativas para tornar exigíveisas normas constitucionais. Tais medidas são essenciais para se obter operatividade prática da própria Constituição, constituindo-se em o que Gomes Canotilho e Vital Moreira na “Constituição Portuguesa Anotada” chamam de mediação legislativa.(1047) Uma dessas medidas é, naturalmente, a lei eleitoral que regula todo o processo de legitimização democrática.
A inconstitucionalidade de um número significativo de normas, contidas na lei eleitoral de 1990, criou o imperativo de se legislar sobre o processo eleitoral: A Constituição de 1992 exigia uma lei eleitoral em conformidade com os seus princípios e normas. Em certas ordens constituicionais como a portuguesa, existe mesmo a figura de inconstitucionalidade por omissão que se aplica nos casos em que o Estado falha em desenvolver actividade, legislativa ou outra, para tornar funcional a Constituição. Não temos essa figura de inconstitucionalidade por omissão na nossa Constituição, mas o dever de legislar é real e incontornável.
A Lei Eleitoral 116/IV/94 cumpre esse dever de legislar numa matéria fundamental como é o processo eleitoral. Sendo a primeira lei eleitoral em conformidade com a Constituição, não parece evidente que o artigo 102 da Constituição se lhe aplique em pleno. A intenção do legislador constituinte no artigo em questão é de prevenir contra alterações ou revogações de carácter manipulatório de leis eleitorais previamente existentes. O conflito, criado pela entrada tardia em vigor, Março/Abril de 1995, da Lei Eleitoral 116/IV/94 por força de negligências de carácter administrativo, cede perante o imperativo constitucional de legislar nessa matéria sob pena de não operacionalização de princípios fundamentais consagrados na Constituição, designadmanete o princípio do sufrágio universal, directo, secreto e periódico para a eleição dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local.
A inexistência de uma lei eleitoral alternativa, susceptível de ser repristinada, confina os efeitos no sistema de tal conflito, particularmente quando se tem em conta que o acto constituitivo da Lei Eleitoral 116/IV/94 verificou-se num tempo respeitador do espirito do artigo 102 da Constituição - ano anterior às eleições. Daí se pode concluir que o impasse é aparente e que só resulta do facto de certos raciocínios não terem em consideração que, com a Constituição de 1992, houve, de facto, uma ruptura constitucional e que, portanto, urgia e urge criar os mecanismos necessários para tornar exigíveis as normas constantes da nova ordem constitucional.
Nesta perspectiva, a via de uma revisão extraordinária e pontual da Constituição parece uma reacção excessiva e perigosa para resolver um problema cuja origem não tem qualquer base no que o artigo 102 da Constituição procura precaver, mas sim em aspectos contingenciais, ligadas à actividade administrativa.
A Constituição da II República só tem três anos. Submetê-la, neste momento, a processo de revisão, mesmo que pontual, não é responsável, nem aconselhável. Ainda está em progresso todo o processo que Gomes Canotilho chama de solidificação da legalidade democrática e, portanto, acções de revisão, pela insegurança constitucional que lhes é inerente, constituem ameaças sérias, particularmente nos primeiros anos de implementação de uma ordem constitucional. É por essa razão que certas constituições, como a Constituição Portuguesa de 1976, incluem uma norma que proíbe quaisquer revisões, ordinárias ou extraordinárias, no tempo correspondente à I Legislatura. Não temos essa norma na nossa Constituição, mas considerando a necessidade de estabilidade da Constituição devia-se refrear de qulquer tentativa de revisão num tempo tão curto após a sua entrada em vigor.
A revisão extraordinária da Constituição como uma saída expedita para o actual impasse peca por vários erros e equívocos:
Primeiro, diz-se que será uma operação rápida (30 minutos) e consensual não causando grandes sobressaltos. Não é essa a conclusão que se poderá retirar da leitura da Constituição e nem poderia ser. O processo de revisão é um processo particularmente agravado, a fim de evitar modificações dos mecanismos constitucionais ao sabor de relações conjunturais de força entre os protagonistas políticos . Se não vejamos:
- Só após cinco anos após a promulgação da Constituição é que o parlamento poderá assumir poderes de revisão;
- para uma revisão extraordinária é necessário que quatro quintos dos deputados aprovem uma resolução, que após a sua publicação no Boletim Oficial, confere à AN poderes de revisão;
- a iniciativa da revisão é exclusivamente dos deputados, ficando de fora o Presidente da República, o Governo e mesmo os grupos parlamentares;
- diferentemente de outras inciativas legislativas que segundo o regimento da AN devem ser subscritos por um máximo de 15 deputados, os projectos de revisão exigem um mínimo de um terço dos deputados em efectividade de funções;
- o prazo para apresentação de projectos de revisão é de sessenta dias a partir do momento em que fôr apresentado o primeiro projecto de revisão;
- cada alteração deverá ser aprovada por uma maioria de dois terços;
Pode-se distinguir três fases no processo de revisão:
Uma primeira fase em que os deputados, após deliberação chegam a acordo sobre a matéria a ser objecto de revisão e aprovam a resolução que consubstancia esse acordo. Esta fase termina com a publicação da resolução no Boletim Oficial, sob pena de inexistência jurídica ( artigo 292 da Constituição).
A segunda fase inicia-se com a apresentação do primeiro projecto de revisão. Considerando o prazo de sessenta dias para a apresentação de outros projectos é de se concluir que a segunda fase poderá prolongar-se até o fim desse tempo. É a posição de Gomes Canotilho em relação ao caso português, cujo prazo de apresentação de projectos de é de trinta dias, quando diz que “...não existe prazo constitucionalmente marcado para se iniciar o processo de revisão após a deliberação de assunção de poderes, podendo talvez considerar-se aplicável por analogia o disposto no artigo 285 -2 (trinta dias)”.
Tentativas de encurtamento do prazo pela via de eliminação da possibilidade de apresentação de outros projectos de revisão através de consensos negociados entre forças políticas ferem o princípio de que a iniciativa de revisão é exclusiva de deputados, excluindo, portanto, as representações dos partidos no parlamento que são os grupos parlamentares (artigo 20 do regimento da AN). Outrossim, tais tentativas prejudicariam a exploração do contraditório, função essencial do parlamento, enquanto representante dos cidadãos e sede das diferenças de posições, interesses e pontos de vistas, próprias de uma sociedade plural.
A Constituição no n. 2 do artigo 310 estabelece o número mínimo de um terço dos deputados em efectividade de funções para subscrever um projecto de revisão, mas falha em definir o número máximo de subscritores. No Regimento da AN, o n.1 do artigo 121 limita claramente o número de subscritores de um projecto de lei a quinze deputados. Isso porque deixando ilimitada ou exagerada o número de subscritores a efectividade da AN saíria consideravelmente diminuída. A interpretação que se deve dar, portanto, à elevação a um terço o número de deputados que devem subscrever um projecto de revisão é que o legislador constituinte queria tão somente afirmar a importância excepcional da revisão constitucional. Esse parece ser o entendimento de Jorge Miranda na obra Manual do Direito Constitucional quando diz que “o Regimento limita a vinte Deputados o número de subscritores de um projecto de lei e a mesma regra pode estender-se aos projectos de revisão, por aqui também proceder a sua ratio legis: evitar pressões sobre a Assembleia”.
A apresentação de projectos de revisão no prazo definido conduz ao que Jorge Miranda chama de“cumulação de todas as iniciativas num só processo, numa regra de condensação destinada a assegurar uma ponderação simultânea e globalizante das modificações constitucionais e a garantir a unidade sistemática da Lei Fundamental”
A terceira fase começa com a discussão conjunta de todos os projectos de revisão e termina com a aprovação, uma a uma, de cada alteração por uma maioria qualificada de dois terços.
Ora, considerando tudo isto não parece que a via de revisão constitucional seja realmente fáctivel. A ser realizada em tempo recorde poderia incorrer em vícios que, a ajuntar a outros (designadamente a assunção de poderes de revisão pela mesma AN que a tinha aprovado, o facto da AN se encontrar no fim da sua legislatura e, portanto, com a sua legitimidade para actos excepcionais consideravelmente diminuída e o facto da inciativa, mesmo que tenha sido em forma de sugestão, veio publicamente do Presidente da República), constituíriam precedentes perigosos para a estabilidade da Constituição e a solidez das instituições constitucionais.
Segundo, não é evidente que a revisão constitucional, seja no sentido de introdução de uma norma transitória seja no de alteração do próprio artigo 102 da Constituição, irá resolver o problema da aplicação da Lei Eleitoral 116/IV/94. A aprovação do novo texto da Constituição afecta o direito ordinário vigente. É nesse sentido que com revisão proposta se procura alterar a relação entre a Lei Eleitoral 116/IV/94, em vigor desde Março/Abril, e a Constituição, particularmente no que concerna ao artigo 102. A alteração que se pretende é que com a Constituição revista a Lei Eleitoral 116/IV/94 tenha aplicação nas próximas eleições.
Ora, a propósito dessas manipulações, Gomes Canotilho e Vital Moreira, na obra citada, diz o seguinte: “Quanto ao direito ordinário contrário à Constituição antes da revisão, não deverá considerar-se como retroactivamente convalidado, só por deixar de ser contrário à Constituição após a revisão. Desde logo, por uma razão prática: a admitir-se essa solução, estaria aberta a porta para revisõesantecipadas por via de lei ordinária, feitas à conta de futura revisão constitucional; por outro lado, a razão invocada para convalidar o direito ordinário anterior à Constituição - designadmaente a de que os órgãos de fiscalização da constitucionalidade não podem ser guardiões de uma ordem constitucional perimida - não colhe aqui, pois a ordem constitucional continua a ser a mesma, embora parcialmente alterada. Portanto, a validação não poderá retroagir ao tempo anterior à lei de revisão e só tem sentido em relação à inconstitucionalidade material, mas não em relação à inconstitucionalidade formal ou orgânica, pois esses tipos dizem respeito à formação do acto normativo, não podendo ser sanados aposteriori.
Finalmente, a revisão extraordinária de Constituição proposta, ao dissuadir o recurso a órgãos de fiscalização da Constituição, designadamente o Supremo Tribunal de Justiça, em favor de uma intervenção directa na Lei Fundamental, constitui mais um factor de afunilamento da vida político-institucional do país. Não se dá a oportunidade a certas instituições para cumprirem o seu papel, convida-se outras a um protagonismo deslocado e deixa-se para os deputados e, em última análise, para os partidos políticos a resolução da questão. Mais uma vez a complexidade de funcionamento que o modelo constitucional exige é sacrificado para permitir expressões exacerbadas de interesses partidários, resultando daí que o confronto desses interesses, dificilmente desemboca na substanciação e densificação do interesse geral e nacional.
Nas vésperas do acto eleitoral de reprodução do regime político instituído pelo vontade soberana do povo caboverdiano é fundamental que a ordem democrática estabelecida não seja perturbada por quaisquer interferências na Lei Fundamental. Também revela-se de maior importância que os partidos políticos, no momento em que a sociedade se polariza para as eleições, não se envolvam em confrontos que vão ao âmago da ordem constitucional estabelecida.
O processo que conduziu à adopção da primeira lei eleitoral em conformidade com a Constituição da II República foi, no essencial, conduzido correctamente, merecendo apoio de todas as forças políticas. Em nenhum aspecto vai perturbar o processo eleitoral ou condicionar os resultados das eleições. Todas as forças políticas, a julgar pelas suas declarações que vão ganhar as eleições, se não mesmo obter a maioria absoluta, testemunham que não têm qualquer dúvida que todo o processo vai ser justo, sem qualquer indício de tentativa de fraude.
Em tal ambiente pré-eleitoral de uma certa confiança de todos no sistema político instituído e nos processos e procedimentos eleitorais é, no mínimo, desconcertante que um excessivo formalismo na interpretação de uma norma da Constituição conduza a uma situação potencialmente perigosa para o edifício juridico-político que enforma o campo de actuação e de expressão das forças políticas. A resolução do impasse pelo recurso ao Supremo Tribunal de Justiça ou por uma interpretação da Lei Eleitoral 116/IV/94 como a primeira lei eleitoral, não se aplicando em pleno o artigo 102 da Constituição, mostra-se de extrema importância para o futuro do sistema político caboverdiano. Futuro esse ligado intimamente à estabilidade social e política que constitui a base sobre a qual o desenvolvimento do país poderá verificar-se.
Neste momento sensível a actuação responsável dos órgãos de soberania e das forças políticas revela-se essencial para a manutenção da confiança no sistema político e fundamental para a sociedade que, após a polarização e as clivagens pré-eleitorais, espera uma convergência de esforços pós-eleitoral para a resolução dos problemas urgentes do país.
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