Friday, September 5, 2025

Direito de renúncia: uso e abuso

 

Direito de renúncia: uso e abuso

                                                            Novo Jornal de Cabo Verde, Fev 7, 1995

 

Direito de renúncia: uso e abuso

 

7/2/95                                                                     Humberto Cardoso

 

            A nossa Constituição no seu artigo 54º consagra o direito de todos os cidadãos de participar na vida política como eleitores e/ou como eleitos nos órgãos de poder político. Esse direito faz parte do rol de direitos civis e políticos que substanciam a nossa condição de cidadãos num Estado de Direito Democrático.

 

            A garantia de participação efectiva não seria, porém, completa e justa se não envolvesse o direito do cidadão renunciar a mandatos, que porventura viesse a ser investido, quando em circustâncias específicas e claras não se sentisse capaz de cumprir com as suas obrigações. A Constituição assegura isso quando nos artigos 140º e 175º  nº 2 consagra, respectivamente, o direito de renúncia do Presidente da República e dos deputados. 

 

            A assunção básica subjacente ao exercício desse direito de renúncia é de que se trata de uma decisão pessoal e livre, tomada com consciência exacta das consequências que acarreta tanto para o órgão político como para o posterior posicionamento do indivíduo em questão na cena política nacional. Impõe-se, não obstante, prevenir os efeitos que tais decisões possam ter na funcionalidade e estabilidade dos órgãos de poder político, através de uma efectiva dissuasão do uso abusivo da renúncia.

 

            É nessa perspectiva que o artigo 146º nº 2 da Constituição estipula que “Se o Presidente da República renunciar ao cargo não poderá, a partir da data da renúncia, candidatar-se para um novo mandato nos dez anos seguintes àquela data”. Explicando as razões para um preceito semelhante na Constituição Portuguesa, Gomes Canotilho e Vital Moreira dizem o seguinte: “O nº 2 estabelece limites estritos contra a utilização abusiva do direito de renúncia por parte do PR, seja para explorar uma posição forte que em certo momento disponha, garantindo a sua reeleição por mais cinco anos, seja para medir forças com uma maioria parlamentar hostil ou para plebiscitar qualquer questão política”[i].

 

            Realmente, a renúncia do Presidente da República, órgão singular, implica a  realização imediata de eleições (artigo 120º nº 2) e, portanto, justifica-se plenamente que salvaguardas contra o abuso do direito de renúncia estejam perfeitamente explicitadas no texto constitucional. O mesmo já não acontece com os deputados.

 

            A necessidade de acautelamento não existe no caso dos deputados porque são membros de um órgão colegial com um sistema bem definido de substituições. A única preocupação, é a de evitar que os partidos se sirvam do expediente da renúncia para se imporem ou penalizarem os seus deputados na eventualidade de um conflito interno. O  artigo ... dos Estatutos dos Deputados, que regula o processo de renúncia, estabelece que a renúncia do deputado só é válida quando apresentada directamento pelo mesmo e com a assinatura reconhecida. Evita-se, assim,  que a lógica de funcionamento partidário se sobreponha à proibição explícita do mandato imperativo. 

 

            Os impedimentos que acompanham a renúncia de um órgão singular visam dissuadir a utilização política de um direito que se quer individual e de motivação pessoal. As exigências que se fazem no caso de membros de órgãos colegiais procuram impedir que eleitos fiquem captivos de interesses de grupos ou de partidos. Em todos os casos, porém, é manifesta a preocupação de estabilidade e, também, de uma maior eficiência do sistema político.

 

            Enquanto direito individual do eleito, o direito de renúncia não faz parte do conjunto de normas, processos e procedimentos que constituem os fundamentos e as bases de funcionamento das instituições políticas. A utilização desse direito para condicionar num ou noutro sentido a actividade e a orientação dessas instituições apresenta-se, no mínimo, como absolutamente ilegítima. Pior ainda seria o seu exercício no quadro de uma estratégia de inviabilização do órgão ou instituição com vista à criação de condições para uma configuração de forças políticas mais favoráveis nesse mesmo órgão.

 

            Um dos corolários principais do princípio democrático é o princípio de alternância política, consubstanciada na periodicidade do sufrágio popular. Em democracia, os órgão de poder político renovam-se fixando em cada  momento de renovação uma configuração específica das forças políticas, modelada por graus de aceitação, expressos em votos,  que as mesmas forças conseguem junto ao eleitorado. A fixação de uma determinada configuração política imprime estabilidade e previsibilidade ao sistema, assegurando, por um lado, um comando e uma orientação própria e, por outro, a expressão permanente do dissenso. O conhecimento prévio, porque estipulado na Constituição, da duração do mandato, ou seja, do tempo durante o qual uma determinada configuração de forças políticas vai-se manter permite que formações políticas existentes ou emergentes se preparem adequadamente para induzir   alterações favoráveis no sentido do voto popular.

 

            É evidente que em tal sistema político, eleições antecipadas e/ou intercalares devem ser excepcionais porque pressupõem mandatos incumpridos. A não realização  dos mandatos na sua totalidade pode dever-se a vários factores, designadamente, a fragilidade à partida da própria configuração de forças estabelecida pelas eleições ou acontecimentos posteriores que a vieram introduzir ou, ainda,  a dificuldades de relacionamento das instituições que conduziram à paralisia do sistema. O desejável é porém que os mandatos sejam realizados na íntegra e, nesse objectivo, todos, ou seja os órgãos de poder político, os partidos políticos e a sociedade civil,  são igualmente responsáveis.

 

            A exigência de eleições antecipadas e/ou intercalares faz parte, naturalmente, das manifestações de dissenso da oposição. O seu abuso, contudo, com chamadas constantes para interrupção de mandatos, com justificações mais ou menos levianas ou de puro oportunismo político denotam uma deficiente interiorização dos princípios democráticos. Constitui também prova de uma atitude de irresponsabilização perante o imperativo de se velar colectivamente para o cumprimento integral da Constituição e para a salvaguarda dos processos e procedimentos por ela consagrados.

 

            Argumenta-se muitas vezes que a democracia é isso mesmo: a possibilidade de se exprimir ou de agir no sentido de chegar ao poder a todo o momento e sem olhar a meios. Nada mais falso. Gomes Canotilho e Vital Moreira, numa passagem do seu livro Constituição Portuguesa Anotada, são claros a esse respeito: “Estado de direito democrático.. significa.. que o poder se forma e se exerce nos termos da Constituição, que a democracia é constitucional, que não existe democracia fora da Constituição e que nenhuma vontade pode prevalecer sobre a Constituição[ii].

 

            A experiência democrática caboverdiana, de apenas quatro anos, tem sido marcada por uma luta permanente de todos os actores políticos e da sociedade no sentido de uma adequação de posições e atitudes em conformidade com o sistema democrático e, também,  de interiorização dos princípios, normas e procedimentos que tal sistema implica. Esse esforço revela-se desigual não só porque o ponto de partida dos indivíduos e das forças políticas é diferente como também pelo facto do Poder exercer um fascínio enorme numa sociedade que, só há bem pouco tempo, estabeleceu avenidas, abertas a todos, de mobilidade social e política. Daí a falta de paciência, os oportunismos  e o imediatismo irresponsavél.

 

            À semelhança do que se passou em outras latitudes com formações políticas ou coligações de forças políticas que emergiram do movimento popular para instauração da democracia, o MpD teve o seu momento de crise interna, resultante de tensões sociais e políticas que acompanham todos os processo de transição democrática. No caso caboverdiano a tensão tem sido, num certo aspecto, maior porque a única força de oposição parlamentar é precisamente a formação política que, outrora, incarnara o regime anterior. Da crise “natural” surgiram perturbações na configuração das forças políticas representadas nos órgãos políticos que não se traduziram, porém, em factores significativos de instabilidade institucional.

 

            Apesar disso, vozes oposicionistas têm se levantado desde então clamando por eleições antecipadas em tudo o que seja órgão eleito. Concentraram o fogo primeiro no Governo que soube responder adequadamente com uma moção de confiança, e  logo de seguida, incidiram a sua atenção sobre o parlamento, tentando desacreditá-la enquanto instituição. Paralelamente a essas actividades, procurou-se paralisar e desestabilizar as instituições do poder autárquico.

 

            Se a atitude da oposição em relação às instituições, designadamente a Constituição, cognominada de constituição do MpD,  e o parlamento, onde se tornou cúmplice de tentativas de introdução da figura inconstitucional de grupos parlamentares independentes, revela-se como imprópria, é no ataque às instituições do poder local que a sua irresponsabilidade atinge os limiares do aceitável.

 

            Os órgãos do poder local são realmente as únicas instituições absolutamente novas em Cabo Verde. Como tal, devem ser acarinhadas por todos, principalmente por aqueles que se dizem partidários da descentralização do Estado, que apelam pela necessidade de criação de uma cultura democrática e que denunciam a situação de marginalização de ilhas e comunidades espalhadas pelo país. Não são, e nem devem ser, objecto de instrumentalização para satisfazer apetites partidários e pessoais, particularmente nesta fase inicial da sua implantação e afirmação.

 

            A desestabilização dos órgãos autárquicos, para além do seu aspecto negativo intrínseco, tem sido feito de forma a reforçar os equívocos existentes quando aos princípios e procedimentos que norteiam o seu funcionamente. Assim, fez-se crer, primeiramente, que o sistema de governo a nível local era parlamentar e que, por conseguinte, no caso da Praia, uma perda de maioria na assembleia municipal deveria acarretar, logicamente, a queda da câmara. Depois, induziu-se as pessoas a pensar que o programa de actividades e o orçamento eram da câmara e que, portanto, se não estava a ser aprovado na assembleia a responsabilidade recaía, essencialmente, sobre esse órgão.

 

            Em nenhum momento se informou os munícipes que o sistema de governo, diferentemente do que existe a nível nacional, aproxima-se mais do sistema presidencial, em que o deliberativo e o executivo têm igual legitimidade. Não podem dissolver um ao outro e estão, por consequência, condenados a entenderem-se. Ninguém fez saber que o processo de aprovação do programa de actividades e do orçamento é o acontecimento de maior importância porque dá a todas as forças políticas e a todos os munícipes a oportunidade de se pronunciarem sobre a vida municipal  e que tal processo constitui a via fundamental para o órgão deliberativo controlar de facto o executivo.

 

            O resultado de omissões, equívocos e oportunismos políticos é, no caso da Praia,  o incumprimento pela assembleia municipal do seu dever principal, para com os  eleitores e para com toda a comunidade praiense, de dotar o município de um orçamento próprio. Na prática, isso corresponde à  paralisia de facto de um órgão político, devido à recusa obstinada da maioria dos seus membros de exercerem os poderes que neles foram investidos.

 

            A prática de desvio das normas e procedimentos de acção política no seio das instituições manisfesta-se agora no seu último artifíco: a renúncia de mandato. A oposição na assembleia municipal da Praia fez, publicamente, saber da sua intenção de renunciar colectivamente ao mandato como forma de inviabilizar esse orgão e de precipitar a sua dissolução. A originalidade no uso desse artifício, como forma de provocar eleições antecipadas ou intercalares, não é dessa força política mas sim provem, de algures, do caso de S.Vicente.

 

            A 8 de Dezembro de 1994 a Câmara Municipal de S.Vicente “renunciou”ao seu mandato. Em declaração pública, esse órgão autárquico justificou a sua atitude baseando-se num conflito em que os protogonistas eram a pessoa do seu presidente e o representante local da televisão estatal. A troca de insultos entre os dois, devidamente documentada no Novo Jornal de Cabo Verde de ......, teria sido assumida por esse órgão como um ataque à dignidade da ilha que só poderia ser resgatada por um conjunto de acções, a começar pela sua renúncia. 

 

            Dois aspectos saltam logo á vista quanto se procura compreender a lógica subjacente à atitude da Câmara de S.Vicente: 1- pretende-se com um conflito (não muito claramente de caracter institucional, mas sim pessoal), completamente exterior aos suportes e mecanismos de legitimização e de funcionalidade dos órgãos autárquicos, justificar a inoperância e a consequente dissolução da câmara; 2- reivindica-se o direito individual de renúncia ao mandato como subterfúgio numa acção colectiva dos membros de um órgão com vista à realização, a curto prazo, de eleições intercalares.

            É o próprio Doutor Onésimo Silveira que em entrevista ao jornal “Já” que explicita os motivos e os objectivos (extractos):

      (..) Mas quando um delegado de uma instituição estatal, não das menores, se atreve a insultar o Presidente da Câmara, nos termos em que o fez, isso é extremamente grave(...);

      (..) É normal em democracia recorrer à renúncia e provocar eleições antecipadas.É isso que estamos a fazer (..);

      (..) Vamos apresentar ao eleitorado as mesmas pessoas que receberam o primeiro mandato (..);

      (..) Não penso que o Governo estaria em posição de desafiar um resultado eleitoral que indicasse claramente que a questão da comunicação social deveria ser revista (..).

            As razões do presidente da Câmara de S.Vicente não colhem:

            A Constituição e as leis da República consagram com especial realce o princípio de autonomia das autarquias locais, cingindo, em toda a coerência, as intervenções do Governo a situações bem específicas, que consistem na “verificação de cumprimento da lei pelos órgãos autárquicos (artigo 258º)”. Essa autonomia advém directamente do facto dos seus orgãos serem legitimidados pelo voto popular na circunscrição territorial da autarquia. A autonomia dos órgãos autárquicos encontra, portanto,  a sua justificação plena no próprio princípio democrático. Se ao Governo é extremamente limitado os casos em pode exercer o poder de dissolução dos órgãos, parece completamente fora de propósito que qualquer incidente no relacionamento dos orgãos ou dos seus titulares com qualquer instituição ou serviço, exteriores ao poder local, possa servir de causa ou motivo para dissolução.

 

            A via utilizada para colocar o povo de S.Vicente e o país sob facto o consumado de inviabilização da câmara e a perspectiva de eleições intercalares não se pode dizer que esteja conforme aos procedimentos democráticos. O direito de renúncia, sendo pessoal e individual, não pode ser exercido em acções de grupo, mormente para paralisar completamente um orgão eleito. O objectivo salientado de provocar eleições com o fito de levar o povo a ajuizar de uma determinada postura é na realidade uma tentativa de plebiscito, que força uma analogia com o caso, referido atrás, de renúncia do Presidente da República, com todas as consequências inerentes.

 

            A intenção, imediatamente manifestada pelos membros da câmara, que exerceram o direito de renúncia, de se apresentarem às eleições, confirma o uso desse direito como um perfeito expediente para a prossecução de objectivos políticos. A indisponibilidade pessoal, única justificativa do exercício do direito de renúncia, foi  seguida, no próprio momento da sua manifestação, de uma declaração que a negava completamente. Farsas do género que tornam aleatória a própria actividade política e minam a confiança nos órgãos do poder político são absolutamente contrárias ao espírito da Constituição e das leis do país.

 

            As omissões que presentemente existem na legislação autárquica quanto ao tratamento de casos como estes não podem, e nem devem, ser utilizadas pelas forças políticas presentes nas instituições do poder autárquico. Há uma responsabilidade global que é exigida a todas essas forças para uma participação construtiva na consolidação das mesmas, incluindo a percepção e debate dos problemas que as afligem e propostas específicas para os ultrapassar.

 

            A legislação autárquica portuguesa, em muitos aspectos semelhantes à nossa, dá-nos pistas em como um conjunto de problemas, originados pela irrazoabilidade das forças políticas ou dos seus eleitos, podem ser superadas por uma intervenção do Governo no âmbito da sua função constitucional de verificação do cumprimento da lei pelos órgãos autárquicos. Assim, a Lei  n 87/89 de 9 de Setembro, que estabelece o regime jurídico da tutela administrativa das autarquias locais e das associações de município de direito público, no artigo 13º  nº 1.  c) diz o seguinte:

 

            1. Qualquer órgão autarquico pode ser dissolvido pelo Governo:

             ... c) Quando não tenha aprovado o orçamento de forma a entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de cada ano, salvo ocorrência de facto julgado justificativo e não imputável ao órgão em causa;

 

            A mesma Lei, no artigo 14º  (Efeitos de dissolução e da perda de mandato), estipula o seguinte:

            1. Os membros de órgão autárquico objecto de decreto de dissolução, bem como os que hajam perdido o mandato, não podem fazer parte da comissão administrativa  prevista no nº. 2 do artigo anterior, nem ser candidatos nos actos eleitorais destinados a completar o mandato interrompido, nem nos subsequentes que venham a ter lugar no período de tempo correspondente a novo mandato completo, em qualquer órgão autárquico.

            ...

            4. A renúncia ao mandato não prejudica os efeitos previstos no n º.1 do presente artigo.

 

            Em anotação ao disposto no nº. 4,  Isaltino Morais e José Luís Gomes no livro “Manual do Autarca” dizem: “(..) a renúncia ao mandato não prejudica os efeitos resultantes da dissolução ou da perda de mandato, a fim de não permitir que tal medida se transformasse num mero expediente para evitar as consequências da aplicação de sanções”[iii].

 

            Depreende-se do que aqui se referiu que a figura de renúncia colectiva não existe na legislação actual, nem podia existir, na medida em que é contrária aos princípios e aos  processos e procedimentos previstos na Constituição. Mais, qualquer utilização dela como instrumento de luta política revela-se ferida de maior ilegalidade, tanto que no caso português, referido atrás, os seus protogonistas são barrados de participação nas intercalares e nas eleições normais que se seguem. A analogia com a penalização do Presidente da República, em caso de renúncia, é por demais flagrante.

 

            Urge, neste momento em que renúncias colectivas já desencadearam processos eleitorais e em que outras acções semelhantes se anunciem, que os órgãos de soberania assumam completamente as suas responsabilidades. O mandato constitucional de velar pelo normal funcionamento das instituições obriga a que se prestem a intervir, atempadamente, para conformar as acções das forças políticas aos procedimentos que a Constituição prevê. E, também, que preencham as lacunas na lei ordinária, facilitadoras de oportunismos e voluntarismos, que, para além de destoarem completamente do espírito da Constituição, ainda constituem sobrecargas financeiras e morais para o país.



[i] Canotilho Gomes e Vital Moreira, Constituição Portuguesa Anotada, 2ª edição, II V pg 101

[ii] Ibid. I Vol, pg  75

[iii] Isaltino Morais e José Luís Gomes, ManuaL do Autarca, pgs. 194, 195 e 196

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