Friday, September 5, 2025

A sociedade e o Poder em Cabo Verde (IV)

A sociedade e o Poder em Cabo Verde (IV)

 

                                                                                              Humberto Cardoso

 

            Historicamente, consta-se que a acontecimentos sociais e políticos de grande envergadura, portadoras de profundas mudanças nas relações de poder numa comunidade, segue-se um lento mas progressivo desvanecer da euforia que, pouco antes, parecia animar e sustentar toda a gente na realização de tarefas impensáveis em tempos normais. O regresso à normalidade da vida, com todas as suas complexidades e interesses múltiplos, muitas vezes, conflituantes, tem um efeito anti-clímax que provoca em muitos o desencanto, a descrença e, mesmo, o resentimento em relação aqueles que, de forma mais pronunciada, personalizaram a mudança.  A sociedade vê-se, novamente obrigada a enfrentar os seus problemas de sempre, a confrontar as suas fraquezas intrínsecas e a projectar-se nas suas esperanças, que, embora avivadas nos acontecimentos recentes, nem por isso se mostram de concretização imediata.

 

            A manutenção de uma atenção e uma energia sociais direccionadas para o aprofundamento das transformações do ambiente socio-político, iniciadas a nivelmacro mas que para se sustentarem precisam existir a nível micro, depende, nomeadamente:

            - da natureza, qualidade e complexidade das relações sociais e, ainda, do seu grau de autonomia;

            - das características das organizações que constituem a interface da sociedade com o sistema político.

 

            A instauração da democracia  põe a nu, com especial clareza, as deficências da sociedade, na medida em que sendo o sistema político mais exigente e abrangente em termos de participação popular, fundamenta-se precisamente na negação de qualquer forma de exclusão e, por conseguinte, no direito à diferença e no princípio de igual oportunidade. Uma sociedade como a caboverdiana, constrangida a modelar-se no após independência, com base na diferenciação a vários níveis de quem é nós e quem é eles (combatentes e militantes; direcção superior e Partido; militantes e não militantes; exploradores do povo e povo; patriotas e não patriotas; emigrantes e nacionais; etc.)  grandes dificuldades manifesta em reajustar-se a uma vivência em que todos são iguais perante a lei e em que o poder político é legitimado na base de um cidadão, um voto.

 

            A exclusão, para ser real, precisa organizar-se, isto é, definir os termos de pertença e não pertença, esforçar-se por manter os privilégios dos incluídos, competir com outros grupos para ser mais dentro e, naturamente, procurar reproduzir-se.  Não valendo os direitos de nascimento porque só o Partido, enquanto instrumento da história, é eterno, procura perpetuar-se pelo processo de cooptação dos mais leais e dos que dão maiores garantias.  Assim, alarga-se o conceito de combatentes da liberdade da pátria para que o exclusivismo do grupo não se perca e não se petrifique. Criam-se organizações-“viveiros” para se ter material novo para cooptação futura e procura-se enquadrar todo o mundo, para que cada um saiba o seu lugar. Um sistema de penalidades e recompensas mantem tudo no seu lugar e uma hipocrisia oficial  - todos são, afinal, camaradas - tranquiliza consciências e relembra que, colectivamente, estão simplesmente a empurrar a grande roda da História.

 

            A democracia corroi, lenta mas inexoravelmente, tal sistema. Para se instalar reclama o voto igual, livre e secreto; para funcionar exige, designadamente, liberdade de expressão e de informação; para se manter, obriga-se ao seguimento estrito de leis escritas e publicadas; para ser efectivo, precisa de órgãos de direcção, contituídos por cidadãos com mandatos, ou seja, eleitos pelo voto popular. Os pressupostos do outro sistema - o exclusivismo da legitimidade histórica, o clientelismo, a cooptação - não conseguem resistir, por muito tempo, aos efeitos erosivos da prática democrática.

 

            Mas isso não se realiza sem uma grande luta. A antiga elite dirigente e a sua clientela procuram metamorfosear-se em formas pacíficas de actuação com o mesmo direito dos outros; apresentam-se como vítimas quando apontados, e esforçam-se, subrepticiamente, por impedir o desenvolvimento de relações sociais e económicas que aprofundem os efeitos de desgaste da vivência democrática sobre a sua rede de influências e sobre os seus clientes. Tornam-se, nessa lógica, os maiores denunciantes de corrupção, os mais exigentes no acautelar das acções dos responsáveis pelo Estado democrático e os mais ferverosos na defesa das normas por eles introduzidas quando no poder, cientes das motivações hipócritas e intrumentais que as animavam então. Chegam ao ponto de se afirmarem como os mais democratas em tentativas de extrapolação, até quase ao absurdo, de elementos parciais da filosofia liberal. O objectivo é abrir completamente o sistema político democrático a arremetidas sucessivas de forças sociais, através do exercício dos direitos civis e políticos sem a mediação das instituições, ainda por consolidar, e sem o sancionamento e a moderação, que a noção de interesse público e o sentido do bem geral, naturalmente, criam.

 

            Anne Applebaum, num recente artigo na revista Foreign Affairs (Nov/Dez 1994), faz um conjunto de observações sobre as relações de poder nas sociedades em transição na Europa de Leste que, em alguns casos, têm facilitado o regresso dos ex-comunistas ao poder:

            Não é o espectro de 1930 [o nacionalismo exacerbado]  que assombra a Europa Central, mas sim o velho modelo italiano - regimes corruptos dirigidos pelos antigos partidos comunistas que se apoiam numa classe empresarial semi-mafiosa formada, em grande parte, por ex-comunistas. O regresso dos comunistas ao poder reflecte a emergência de uma nova elite económica. As ligações entre os capitalistas, outrora parte da nomenklatura, e os políticos comunistas mantêm-se intactos, criando uma classe dirigente que conserva poder em várias esferas, não deixando muito espaço para uma real competição nos debates políticos e económicos. [Isso porque] (..) com melhores contactos, mais dinheiro e mais propriedade para se iniciarem,  os ex-comunistas têm sido os maiores beneficiários dos últimos quatro anos de reformas económicas. Não é, portanto, surpresa que os partidos dos ex-comunistas sejam melhor financiados e organizados que os partidos criados pelos dissidentes do regime comunista.

 

            Em Cabo Verde, o protagonismo da antiga elite e da sua clientela na perservação o máximo possível, das condições de outrora - ao mesmo tempo que, com os meios que detêm (contactos, capitais, etc)  fazem uso rápido das novas oportunidades para, no futuro próximo, poderem dar cartas, no quadro das novas relações económicas - tem como efeito imediato uma certa travagem do processo de autonomização da sociedade, tornada possível pela democracia. Nisso, essa elite é objectivamente ajudada pela inércia dos interesses imediatos de vários estratos sociais e pelo receio do desconhecido que, na  nossa sociedade, ficou mais vincado por anos de existência no limiar da sobrevivência, da qual se escapou para cair na dependência completa do Estado. Assim,

·   funcionários do Estado são sensíveis a políticas que visam reduzir os efectivos da Administração Pública e adequa-la a funções não mais estritamemte controladoras mas sim facilitadoras, exercidas de forma descentralizada e desconcentrada, num quadro de uma economia de mercado. A necessidade de controlo do crescimento do Orçamento do Estado e do seu défice colide, de imediato, com a segurança que o trabalho na função pública habituou o funcionário, apesar de, a médio e longo prazo, esse controlo se mostrar como um dos principais factores de prosperidade do país, pela estabilidade em termos macroeconómicos, que ajuda a manter;

·      quadros na função pública e no sector público sentem-se inconfortáveis com a perspectiva do Estado evoluir para uma nova relação com a economia nacional e com a sociedade. Não há percepção clara das novas possibilidades de avanço, em termos profissionais e pessoais, que se abrem, à medida que o Estado abandona o controlo administrativo tradicional em favor de uma gestão macroeconómica, suportada por políticas, designadamente, monetária, financeira e fiscal, e que estimula a sociedade no sentido de ganhar mais autonomia e de participar na construção de um aparelho produtivo nacional. Ouve-se, pelo contrário, as acusações absurdas de ultra-liberalismo e os apelos dos novos militantes da justiça social, em reacção à perda antevista dos privilégios e do poder tradicionais, ao mesmo tempo que se constata o reforço do espírito anti-empresarial  em certos sectores de opinião;

·   trabalhadores no sector empresarial do Estado receiam políticas de reestruturação das suas empresas, porque implicam saneamento financeiro e privatizações que, em muitos casos, obrigam a despedimentos. Não é fácil para eles compreender que o seu emprego é custeado, em grande parte, não pela empresa mas, sim, pelo Estado, e que tal situação não pode permanecer indefinidamente, sem esperança para a empresa e sem a possibilidade de uma dinâmica empresarial geradora de novos postos de trabalho para os desempregados e para os que procuram o primeiro emprego.

·   comerciantes têm dúvidas em relação à liberalização do comércio, porque habituaram-se a ganhos certos, através do sistema de plafond, que dava a alguns o monopólio de facto das importações, mantinha a competição sempre um passo atrás, permitia conluios na colocação de preços e evitava o investimento no conhecimento de mercados estrangeiros.

·   industriais recomendam cautela na liberalização do comércio externo, porque , habituados às políticas proteccionistas do modelo económico de substituição de importações, não se procuparam devidamente com a productividade, nem com a aquisição de tecnologia adequada e nem, ainda, com o conhecimento dos mercados de exportação. Com a protecção do Estado, espalhavam os seus custos pelos consumidores e poderiam colher lucros fabulosos sem muito investimento em tecnologia e em recursos humanos.

·   trabalhadores das FAIMO desconfiam de políticas de reconversão de mão de obra, porque retiram a certeza dos trabalhos públicos e libertam o indivíduo para incertezas do mercado de trabalho mesmo que, a prazo, o novo ambiente económico aumente as possibilidades de conseguir um trabalho mais compensador, a todos os níveis.

 

            Os receios, as dúvidas e as desconfianças dos vários actores económicos e sociais reforçam a inércia social, inibindo, assim, o desenvolvimento de formas organizadas de interacção com o Estado, capazes de exprimir os seus interesses, de ajudar a modelar as políticas económicas e de contribuir para o desmantelamento da economia estatizada, que conduzia o país a um beco sem saída. Outrossim, essas manifestações servem bem para que a anterior elite e a sua clientela mantenham a sua posição privilegiada nos mais diferentes domínios e instituições, não deixando, porém, de aproveitar - e bem - as possibilidades abertas, enquanto a sociedade se encontra paralisada pela dúvida.

 

            A democracia sofre, porque a única acção que os mesmos actores, assaltados por receios, conseguem desenvolver resulta, na prática, no exacerbar das demandas de um bolo, cada vez menor e em risco de, a prazo, se reduzir ainda mais, com a actual atitude dos países doadores em relação à ajuda externa. Sofre, ainda, porque a democracia funciona melhor com um elevado grau de autonomia da sociedade em relação ao Estado e num ambiente sócio-político sem as tensões permanentes, que a politização de todas as questões, económicas, salariais, etc., derivada da dependência de uns e outros do Estado, naturalmente acarreta.   

 

            O desenvolvimento do país é comprometido, por outro lado, na medida em que

os potencias beneficiários de uma economia aberta, dinâmica e autosustentada, não se engajam, de forma clara e directa, nas transformações necessárias nem demonstram o seu apoio, explicíto, crítico e construtivo, às medidas tomadas na sua implantação. Com a mudez e a inércia, em termos associativos, reforçam as resistências institucionais à mudança e ficam incapacitados de expressar a sua desaprovação em relação à implementação deficiente das medidas já publicitadas. O Governo, sem o feedback da sociedade e da pluralidade dos interesses, que a constituem, maiores probabalidades tem de falhar, por acções e omissões, e de acabar prisioneiro da cultura organizacional das instituições que superintende.

 

             A incapacidade da sociedade em se exprimir, convenientemente, nos seus múltiplos interesses rarefaz os pontos de contacto com o sistema político e concede aos partidos políticos o monopólio de influenciação, a todos os níveis, da vida do país. Como todos os monopólios, a exclusividade de diálogo dos partidos com o sistema político, que isso provoca,  dá lugar a  perversões que, ao serem aprofundadas, vão reflectir-se no desempenho dos partidos na sociedade e na democracia.  

 

            O reducionismo do papel dos partidos é uma das consequências mais óbvias dessa situação: O partido deixa de se preocupar com a tarefa de concorrer para a formação da vontade política do povo e para a organização do poder polítco, para se fixar exclusivamente sobre a quetão do poder. Em vez de apresentar alternativas políticas, de veicular as suas opiniões e posições sobre as políticas e acções do Governo, de informar a sociedade e organizar a sua participação política e, ainda, de participar nos órgãos de poder político de forma a consolidá-los e a direccioná-los para a defesa do interesse público, o objectivo resume-se a apossar-se do poder, no mais curto espaço de tempo. Para isso, desgaste-se o Governo, põe-se em causa as instituições, instrumentaliza-se a sociedade para a lançar directamente contra o sistema, e manipula-se a informação em críticas não equilibradas por propostas alternativas, que permitam aos cidadãos ver o fundo das questões e ajuizar, livremente, sobre elas.

 

            A questão do poder foi central para os partidos políticos nestes primeiros anos da democracia caboverdiana, desviando-os das suas múltiplas funções e, a prazo, comprometendo, mesmo, a sua perenidade e aceitabilidade social e política. Se não, vejamos:

            - O MpD emergiu triunfantemente na cena política, porque soube canalizar e focalizar a energia do  movimento popular constituído em 1990, no processo de luta pelos direitos civis e políticos e pela democaria. Se, de um lado, a origem do MpD garantiu-lhe a vitória e um contínuo apoio popular ao longo do seu mandato, por outro lado, deixou-lhe mal equipado para as exigências próprias do uso do poder. Realmente, as suas raizes profundas na sociedade caboverdiana tornaram-se num handicap quando, entre outros factores, as ambivalências da relação da sociedade com o poder, derivadas de séculos de convivência com poderes estranhos (um mais ou menos remoto e o outro opressivamente muito presente) condicionaram a sua postura e actuação ao longo de todo o processo de desalojamento do partido único de cada uma das instituições do país.

            A aprendizagem do MpD no exercício do poder tem sido, em certa medida, a aprendizagem global de uma sociedade que, pela primeira vez, se vê na posição de determinar o conteúdo e a forma do poder, ao mesmo tempo que, lenta mas seguramente, ultrapassa os traumas e as desconfianças, deixados pelas relações de outrora. Daí os complexos, as dúvidas e as ansiedades, muitas vezes, manifestadas pelo poder na actual vigência do regime democrático. Isso contrasta, fortemente com a postura desembaraçada e focalizada do ex-partido único, reveladora de uma especial cultura de poder, que é assumida na resistência à perda de influência nas instituições do Estado.

            As tensões aí geradas submetem o MpD a impulsos contraditórios, designadamente: um que aposta na emulação dos métodos, já conhecidos, do exercício do poder, ou seja de métodos similares aos do partido único; outro que se presta a continuar o processo de aprendizagem, suportando as dúvidas, as ansiedades e os desencantos; e ainda um outro que pessoaliza o poder, procurando ficar em bem com todos, mas sacrificando a coerência do exercício do poder. Como é de esperar, esses inpulsos não se materializam em correntes no seio dessa organização nem são assumidos separadamente por indivíduos. Convivem global e contraditòriamente na organização, reflectindo-se nas acções, omissões e ambiguidades do exercício do poder.

            A crise no MpD em 1993/94 está intimamente ligada a desiquilíbrios nessa convivência, provocada pelas tensões enormes que a organização teve que suportar até a aprovação da nova Constituição. Manifestações de uma certa proximidade de um um dos impulsos - a emulação de métodos similares aos do partido único - como reacção às pressões da oposição, aliadas a tentativas de controlo da liderança do partido, desencadearam uma reacção em cadeia que concluiu o seu curso na Convenção Extraordinária de Fevereiro de 1994. Aí, a organização, face a grave anomalia no seu seio, reagiu violentamente, acabando por restaurar o equilíbrio interno através da reafirmação dos princípios e valores iniciais e da confirmação da sua liderança.

            O processo de aprendizagem continua, não obstante o seu trilhar tortuoso e doloroso. A resposta, tanto da organização como da base social de apoio, à crise referida atrás, permite prognosticar sucesso nesse empreendimento. Outrossim, as oportunidades criadas pela oposição nos seus sucessivos desafios ao poder têm sido aproveitadas na exercitação dos processos e procedimentos previstos pela Constituição para a confirmação e o exercício do poder, afastando, em consequência, para, cada vez mais longe, as tentações do uso de métodos autoritários .

             Entretanto, as deficiências sociais a nível do estabelecimento de ligações horizontais entre os indivíduos, visíveis,  nomeadamente, na fraca capacidade associativa e na percepção, ainda não muito clara, do que é o bem comum, fazem-se sentir dentro da organização. O pessoalismo, o subjectivismo e a falta de espírito de equipa são sinais disso. Por outro lado, o debate vivo, a presença do contraditório e a larga autonomia das estruturas também demonstram que nada disso é pacífico e que a procura do caminho certo persiste. O grau do apoio social, granjeado a cada momento, indicará se a evolução da organização é positiva ou negativa.

 

            - O PAICV sofre as consequências devastadoras do reducionismo da sua postura como partido político. Centrou-se na defesa das opções caducas do partido único e da sua herança ideológica, resistiu, esforçada e publicamente, à perda de influência nas instituições, e persistiu na utilização de certas tácticas de luta política que o distinguem como uma organização à parte na sociedade caboverdiana. A nova liderança, desejosa de se mostrar digna das tradições do partido, ansiosa pelo acesso à governação e, também, muito consciente da presença, mais ou menos na sombra, dos antigos dirigentes, optou por uma estratégia de derrube do Governo, que veio a revelar-se infrutífera, sacrificando no processo a sua chance de se afirmar como uma alternativa credível.

            A estratégia de poder do PAICV é uma estratégia de curto prazo. Por isso, por um lado, não se retrai de atacar, com todas as armas possíveis, o Governo, mesmo sabendo do prejuízo que causa ao país e das dificuldades que cria a qualquer outra força política que, futuramente, venha a assumir o poder; por outro, esforça-se por impedir o aparecimento de qualquer força política expressiva que não lhe siga as pisadas, em termos de discurso e em termos tácticos, compromentendo o debate plural na sociedade e, a prazo, a eventual redução da base social de apoio do MpD como resultado do aparecimento de organizações autónomas e políticamente credíveis.

            Entretanto, como força eleita da oposição, falha, não se revelando capaz de mostrar à sociedade qual deve ser, de facto, o papel da oposição no sistema democrático. A sociedade fica mais pobre, porque não se lhe oferece alternativas sérias e fiáveis; somente, intrigas, agitação e tentativas de golpes de mão, acompanhados de exigências de demissões, eleições antecipadas, etc.

 

            Outras iniciativas políticas, que vêm surgindo no país, são, quase que instântaneamente, modelados pelos padrões discursivos e tácticos já estabelecidos pelo caracter imediatista de procura do poder. O PCD é o exemplo mais flagrante de uma organização, que surge com um passivo enorme de desconfiança da sociedade, devido ao simples facto de alguns dos seus dirigentes não se terem refreado, na sequência do seu afastamento do poder, de expôr, com excessiva crueza, os seus ressentimentos e o desejo incontrolável de regresso ao poder, sem qualquer preocupação pelos meios utilizados.

 

            Algumas individualidades políticas deixam-se apanhar no frenesim das disputas pelo poder e dos equívocos que a classe política alimenta, e gozam de alguma notoriedade, enquanto se mostrarem controversas. Se a sua postura pública, ainda crítica e independente, se clarifica e o seu compromisso com a democracia se mostra inabalável, são imediatamente condenados ao ostracismo pelas mesmas forças que, pouco antes, teciam-lhes elogios e davam-lhes espaço privilegiado nos seus jornais.

 

            A actual classe política caboverdiana, apesar da diversidade da maioria esmagadora dos seus menbros, em termos de ideias, de objectivos e da relação com o político, tem basicamente uma origem comum: as movimentações que conduziram à independência nacional e as controvérsias geradas no seio e à sua volta, anteriores e posteriores a esse acontecimento. Assim, entre os políticos nacionais encontram-se combatentes e ex-combatentes; militantes de clandestinidade em Portugal e outros das células em Cabo Verde; rivais do PAIGC, antes e depois da independência; militantes expulsos ou saídos do PAIGC nos anos setenta; quadros de partido, criados e promovidos após a purga dessa força política e o abandono do projecto de unidade com a Guiné; e quadros refractários à dominação político-partidária do PAICV nos anos oitenta. Todos dizem-se democratas e podem, eventualmente, funcionar como tal,  mas é na relação concreta com o poder que denunciam a sua origem.

 

            O PAIGC, enquanto organização criada na base dos princípios do leninismo e imbuída de uma estrutura militaro-política para fazer face a uma guerra colonial de mais de dez anos, aprendeu, desde muito cedo, a exercer o poder e a resolver os problemas inerentes a esse exercício. Nesse aspecto ultrapassou, de longe, a sociedade caboverdiana, então confinada no império colonial português, com quem só viria a estabelecer ligações já numa fase avançada da sua existência. Não é, pois, de estranhar que na origem da participação política massiva dos caboverdianos, em 1974, os militantes desse partido tivessem estabelecido imediatamente a sua influência. Só eles, de facto, detinham o know-how de como organizar e de como mobilizar e canalizar a energia social para objectivos políticos específicos. O problema surge, porém, quando usam essa experiência para se eternizarem no poder e negaram à sociedade a possibilidade de determinar o poder que, em nome dela e sobre ela, é exercido.

 

            A vantagem, que o conhecimento dessas técnicas representa em determinados momentos históricos, de mudança profunda, envolvendo movimentos massivos da população, ou, então, na perservação de um regime autoritário, transforma-se no seu contrário, num ambiente de democracia. Quer dizer que oknow-how adquirido com, contra e à volta do PAIGC, mas que se baseia na mesma cultura organizacional, tende a tornar-se num peso terrível, em situações de normalidade democrática

 

            O drama da nossa classe política provém precisamente das dificuldades em se libertar desse tipo de conhecimento e de experiência, tornado inútil, nas novas condições do país. A sua obsessão pelo poder, porém, não a ajuda muito porque ao tentar conquista-lo, a todo o custo e imediatamente, revela muito da sua origem e dos métodos que aprendeu, levando a sociedade a reagir com desconfiança e sentimentos de rejeição.

 

            A possibilidade de participação política plena, que acompanha a implantação da democracia, abre o caminho para a resolução do conflito entre a sociedade e o poder. A oportunidade de aprendizagem política, que é oferecida, continuamente, pelo normal funcionamento das instituições democráticas, permite a criação e a afirmação de uma classe política totalmente liberada das tradições e métodos caducos de como chegar e manter-se no poder. 

 

            A revolução de cultura política e cívica, que isso implica, deve ser encarada como absolutamente necessária por aqueles que hoje se encontram engajados na construção da democracia. Porque, só deixando a sociedade livre para evoluir naturalmente nas suas relações com o político que poderemos ter a esperança de ver emergir uma verdadeira comunidade político- nacional, livre, positiva e dinâmica.

 

            Para isso, é,  porém, fundamental que deixemos o processo de institucionalização da democracia, em curso, prosseguir sem interrupções forçadas e que o seu sistema de referência fundamental - a Constituição - seja respeitado na íntegra, e defendido por todos, até o momento próprio, de uma reapreciação construtiva das suas virtudes e defeitos.



[5]  Samuel Huntington, Polical Order in Changing Societies, pg 10

[6] António Carreira, Cabo Verde - Formação e extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), pg 378

[7] Baltazar Lopes, O Dialecto Crioulo em Cabo Verde, pgs. 42 e 43

[8] Cláudio Furtado, A Transformação das Estruturas Agrárias Numa Sociedade em Mudança - Santiago, Cabo Verde

v Aristides Pereira, semanário Expresso, 20 de Novembro de 1993

 

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