A sociedade e o Poder em Cabo Verde (III)
A implantação das instituições democráticas em Cabo Verde, diferentemente do que aconteceu noutras paragens, não se verificou na sequência de actos ou acontecimentos que, pelo seu alcance e abrangência, se traduzissem no fim definitivo de uma era e no anúncio de uma outra completamente distinta.
Não houve revolução em Cabo Verde, no sentido em que essa expressão é entendida normalmente - mudança rápida, completa e violenta dos valores, das estruturas sociais, das instituições políticas, das políticas governamentais e da liderança. Houve, sim, um processo de reforma, ainda em curso, que vem conduzindo à emergência de novas instituções, a partir da realidade político-institucional legada pelo regime anterior.
A via da reforma foi ditada por um certo equilíbrio de forças que se verificou na segunda metade de 1990: conseguiu-se que as eleições pluralistas fossem antecipadas de cinco anos mas, em contrapartida, teve-se que aceitar que a liderança do regime, então vigente, ficasse à frente do país ao longo do processo de preparação das eleições livres, e que se pusesse de lado a ideia da convocação de uma assembleia constituinte para decidir do novo modelo político. A posterior movimentação das forças políticas no terreno e, mais tarde, o resultado das eleições fizeram o fiel da balança pender, grandemente, para o lado das forças da mudança, abrindo espaço para uma reforma mais profunda. O quadro global do processo de transição não foi, no entanto, alterado na sua essência.
Para que assim fosse, concorreu bastante a estratégia seguida pelo então partido único com vista à perservação das regalias e influência da sua elite e clientela. Uma estratégia com as seguintes vertentes:
· Definição do sistema de governo - semi-presidencial - do novo regime que lhe deixaria mais campo de manobra, independentemente dos resultados. O pressuposto de base era a improbabilidade de perda simultânea das eleições presidencias e legislativas.
· Colocação dos seus quadros em posições cimeiras do aparelho do Estado pela sua integração nas carreiras da administração. Dessa forma, asseguravam rendimentos e ficavam em posição de exercer um protagonismo na contingência de perda das eleições legislativas. Quanto aos seus próprios funcionários, envidaram esforços para também os integrar com todos os direitos e regalias, nos mais diferentes níveis da função pública. Preparava-se, portanto, para prosseguir a política de controlo do aparelho do Estado e de outras instituições, mas agora, a partir de dentro.
· Preservação do mito histórico que constituiu a base de legitimação da elite dirigente como forma de a desculpabilizar e de assegurar a sua continuada influência no novo regime de legimidade democrática.
A estrondosa derrota nas eleições de 13 de Janeiro de 1991 constituiu um desenvolvimento inesperado para essa força política que via, assim, em perigo as suas pretensões de conservação de uma grande margem de manobra dentro do novo regime nascente. Naturalmente que issso não podia deixar de ser foco de tensões, de inseguranças pessoais e colectivas e de tentativas deseperadas de bloqueio do que se augurava ser um movimento para a criação de instituições completamente novas.
O anúncio do abandono do Governo no dia seguinte às eleições foi o sinal dramático das incertezas e da profunda consternação, que se apoderou da elite política que tinha dirigido o país nos últimos quinze anos. Não se tratou, porém, de uma simples resposta emocional: Tinha o propósito claro de criar uma verdadeira instabilidade nas instituições do país. Nesse aspecto pode-se dizer que foi um golpe de mestre embora irresponsável, partindo de quem partiu, e a todos os títulos indefensável.
A vitória do MpD, arrecadando mais de dois terços de deputados, introduziu a possibilidade de redefinição e redireccionamento das instituições que emergiam no quadro do multipartidarismo. O grande potencial de iniciativa para uma mudança profunda das instituições, que resultou dessa vitória, ver-se-ia, entretanto, progressivamente diminuído. A atenção dos novos governantes foi consumida, primeiro, em insuflar confiança e estabilidade às instituições existentes, e, posteriormente, em contrapor-se à guerrilha institucional, que lhe era movida pela antiga liderança do país em todo o aparelho do Estado, como forma de resistência à perda de influência nas instituições. A contradição que residia nesses dois actos sucessivos - confirmar para estabilizar e mudar para adequar - criava uma tensão que sugava ainda mais a energia e a capacidade de renovação do país.
Passados os grandes momentos de euforia e entusiasmo, que acompanham mudanças radicais de regime, o país via-se, novamente, frente à frente aos seus inúmeros problemas, nomeadamente, a nível social, económico e institucional. A construção do sistema democrático iria deparar-se com enormes obstáculos e constrangimentos de vária ordem:
- Ordenamento juridico-político. A Constituição continuava a ser a de 1980, modificada pela revisão de 1988, que se orientou por uma certa flexibilização da economia, e pela revisão de Setembro de 1990, que introduziu o sistema de governo semi-presidencial. No resto, mantinha elementos importantes da filosofia sócio-política e económica do que tinha sido o partido único, ficando, portanto, sem qualquer coerência interna e em contradição com a nova ordem democrática acabada de nascer.
- Ideologia. Apesar da condenação geral do regime de partido único e seu subsequente derrube, importantes elementos do universo político-ideológico do mesmo mantiveram a sua força e dinâmica. O nacionalismo de origem da força política que instituiu o regime, erigido em mito oficial, insinuou-se de uma forma completa e inseparável na ideologia de poder que a caracterizaria nos quinze anos após a independência. O processo de separação, mental e institucional, do que era o ideal nacionalista e o que constituía pura lógica de poder não se mostava fácil nem automático. Muito menos ainda, era a desmotagem do próprio mito libertador. Os mais susceptíveis a isso tinham sido naturalmente os que mais expostos estiveram à influência do aparatus político-ideológico do regime: os militantes e simpatizantes, as pessoas com mais formação académica e os funcionários. Compreende-se, pois, o número de equívocos e dúvidas que persistiram após a instauração da democracia.
- Político. O regime pluralista inciava-se com duas forças politicas com representação parlamentar, sendo uma delas, a oposição, a organização que tinha incarnado e orientado o regime derrubado. A prática de erradicação completa dos dignatários do antigo regime da vida política - saneamento, “lustration laws” - não foi seguida em Cabo Verde, contràriamente ao que aconteceu na maioria das situações de mudança radical de regime, designadamente, em Portugal e nos países do Leste Europeu. O resultado foi, por um lado, ter-se uma oposição que a maioria da população dificilmente podia ver como uma real alternativa política e, por outro, eternizar-se a polarização pré-eleitoral, à medida que essa força se sentia tentada a proteger, sem ver a meios, as suas conquistas e a sua reputação, não se inibindo de utilizar a influência que ainda detinha sobre instituições por ela criadas.
- Económico. Com a mudança do regime, naturalmente que as dificuldades económicas prementes do país não desapareceram. A solução adoptada pelo antigo regime de alargamento do aparelho do Estado, de crescimento do sector público da economia e de abertura das frentes de trabalho (FAIMO), subsidiada em grande parte pela ajuda externa, não podia ser abandonada repentinamente. Mas não a abandonando, persistia-se em manter as condições que impediam o desenvolvimento de um aparelho produtivo nacional. Outrossim, continuava-se a infligir choques profundos à estrutura da sociedade, desarticulando-a e impedindo-a de se tornar autónoma. A persistência das políticas redistribuitivas com base em financiamentos externos revelava-se numa grande ameaça à democracia nascente ao dificultar à sociedade o assumir do papel que lhe é próprio no sistema político democrático.
- Social. O ressurgimento de uma sociedade civil actuante mostava-se dificil, na situação de desarticulação social, caracterizada por fortes relações verticais e e pela inexistência de experiência e hábitos de associação. A atomização social, que se verificara, tinha quase liquidado os hábitos e costumes cívicos; e o sentido do bem geral ou do interesse público como que desaparecera. Em tal ambiente a novidade do exercício de plenos direitos civis e políticos não podia deixar de ser foco de tensões, incompreensões e excessos.
A construção das instituições democráticas, a criação das condições para a sociedade se autonomizar e o desenvolvimento do país passariam pelo necessário desmantelamento das premissas básicas do regime derrubado. A primeira prioridade era naturalmente a criação de um ordenamento jurídico-político, que estabelecesse os princípios básicos do novo sistema político e consagrasse os direitos civis e políticos dos cidadãos, o sistema de governo e os processos e procedimentos que iriam reger a interacção do sistema político com a sociedade. Nesta óptica, a aprovação de uma nova Constituição da República mostrou-se indispensável.
O não reconhecimento pelo oposição da necessidade de um novo Texto Constitucional fez reviver o conflito, ainda não totalmente resolvido, entre o regime de partido único e a democracia. Face a essa exacerbação da polarização política, até o momento mais ou menos latente, manifestaram-se tensões e fracturas cuja cristalização iria provocar sérios problemas ao processo de implantação e consolidação das instituições democráticas.
A aprovação da nova Constituição e da nova Bandeira Nacional, tornada possível pela maioria qualificada de dois terços dos deputados detida pelo MpD, desencadeou um forte movimento contra o que forças oposicionistas iriam chamar de ditadura da maioria e de presidencialismo do Primeiro Ministro. Assim, de uma oposição democrática desejável passou-se, primeiro, para o combate aberto contra a liberdade da maioria se exprimir como tal, depois, para acções de esfrangalhamento dessa mesma maioria e, finalmente, para boicotes pontuais do próprio parlamento. Essas atitudes não ajudaram, em nada, a compreensão pela sociedade e pelas instituições do funcionamento básico da democracia. Pelo contrário: Contradiziam, frontalmente, o princípio maioritário e negavam a responsabilidade das minorias na defesa das instituições. O espectro do regime do partido único continuava, pois, a assombrar o novo sistema político, perturbando o seu funcionamento e não permitindo que os seus diferentes actores fizessem uso cabal das suas potencialidades .
Dando voz às assombrações de unicidade do poder, muitos assumiram em pleno a luta contra o executivo. Pelo caminho, disvirtuaram completamente os princípios da ordem política que, em uníssono, proclamavam apoiar. Assim,
- A Constituição foi estigmatizada desde a primeira hora. A discussão pública do ante-projecto sofreu bastante as tentativas de evasão da oposição: a negação da indispensabilidade de uma nova constituição; a insistência na contestação dos procedimentos que iriam levar à a sua aprovação; a incidência sobre a questão dos poderes do Presidente da República; e finalmente, a recusa dos deputados da oposição em fazer o seu debate no parlamento. O Presidente da República, eleito pela mesma maioria sociológica que colocou no parlamento os deputados que a aprovaram, agravou a situação com a sua postura, equívoca, na promulgação da nova Constituição e no acto de hastear da nova Bandeira Nacional, que marcou a entrada em vigor da Lei Fundamental.
As quase permanentes exigências de revisão da constituição, feitas pela oposição, numa óptica pura de poder, e, também, recentemente pelo próprio Presidente da República ignoram, ostensivamente, a norma que fixa em 1997 o ano, a partir do qual será posível a primeira revisão. Tal atitude ainda sugere a forma como essa mesma oposição vê a Constituição: um texto partidário que pode ser modificado por razões também partidárias. Em toda lógica, a oposição parlamentar não se disponibiliza em explorar, criativa e construtivamente, o modelo instituído de modo a verificar as suas potencialidades e deficiências e a se posicionar estrategicamente na cena política. Nega as regras do jogo e autolimita-se a tentar, sempre, rebaralhar a partida.
- A Presidência da República viu-se condicionada pela cultura que a instituição desenvolveu no outro regime, em que vigorava o executivo bicéfalo Pereira/Pires. A manobra do então partido único em consagrar uma relação similar no regime pluralista pela introdução, unilateral e ilegítima, do sistema semi-presidencial na revisão constitucional parcial de Setembro de 1990 criou as condições para que tal cultura se constituísse num lastro pesadíssimo na redefinição desse órgão de soberania e também um foco de tensão nas relações com os outros órgãos. Assim, se explicam as acções, omissões e ambiguidades do Presidente da República no processo de aprovação da Constituição democrática e, posteriormente, as dificuldades demonstradas em construir uma Presidência em total acordo com o modelo constitucional vigente.
A democracia implica a separação e a interdepêndencia de poderes. Os órgãos de soberania têm as suas competências constitucionalmente estabelecidas e são proibidos de afectar os poderes atribuídos a cada um deles. Nesse sentido, a postura da Presidência da República em não se conformar com as competências que lhe são ditadas pela Constituição e, também, as tentações, algumas vezes manifestadas, de funcionar como um contra-poder, emulando uma reacção institucional contra a unicidade do poder do regime anterior, constitui um disvirtuamento grave dos preceitos constitucionais. A utilização pela oposição desse conflito, em parte real e em parte inventado, nas suas tentativas de procurar um quase impeachment da Constituição, tornam ainda mais grave essas actuações porque colidem directamente com a condição, atribuída ao Presidente da República, de guardião, por excelência, da Constituição.
- A Assembleia Nacional, enquanto órgão de soberania que suporta o Governo, é o alvo de todos quantos ainda não se encontram libertos das concepções de unicidade do poder. Por isso, tem sido objecto de manobras mais violentas e de tentativas, que se revelaram vãs, de minar e, mesmo, derrubar o Governo.
Esquece-se que a AN é a assembleia representativa dos cidadãos e, como tal, representativa dos interesses e clivagens sociais e políticas e, portanto, o local próprio para o debate e dirimir desses mesmos conflitos. Denigre-se o parlamento, recorrendo a imagens subconscientes, ainda activas nos indivíduos e grupos, da ANP monocórdia, unanime nos pronunciamentos e com eternos consensos, à qual era estranha a existência de interesses diferenciados e plurais. (A percepção de si mesma da AN que, ainda, se vê numa IV legislatura, ou seja, dando seguimento às legislaturas do regime anterior, não ajuda muito no exorcismo dessas imagens.)
Subverte-se o parlamento com a contestação do princípio maioritário, corolário lógico do princípio democrático, com as teatralidades de abandono dos trabalhos do mesmo e com apoios claros a tentativas inconstitucionais de intrusão de novas forças políticas, a meio da legislatura e sem recurso ao voto. Accões constantes são dirigidas nos media com vista à demonstrar à sociedade a inoperacionalidade do parlamento, abusando do facto de não existir qualquer experiência histórica do parlamentarismo. Manobras são feitas para envolver os outros órgãos de soberania na campanha contra o parlamento como ficou sobejamente exemplificado no caso da notícia da pretensa intenção do Presidente da República de dissolver a AN. A relutância do PR em desmentir, independentemente das suas razões, objectivamente contribuiu para a campanha de certas forças políticas contra o parlamento.
Uma vez mais, o modelo do partido único, com um PR-secretário-geral do Partido, pregava-lhes uma partida. Esqueceram-se, completamente, que o PR e a AN são igualmente produtos da vontade popular e que a diferença entre eles reside, simplesmente, no facto da AN representar os cidadãos e o PR representar a comunidade político-nacional, os dois pólos do poder político, cujo o relacionamento não pode fugir ao que está constitucionalmente estipulado.
- O Governo, face às tentações dos outros órgãos de soberania em se posicionarem como contra-poderes, falhando, portanto, na solidariedade institucional implícita no princípio de separação e interdependência de poderes, adopta a atitude correspondente ao outro lado da moeda: o paternalismo de quem tem poder mas permite o desregramento dos outros. Nesse aspecto, o Governo também contribui para que o modelo constitucional do sistema de governo não seja aplicado em pleno e experimentado até às suas últimas consequências.
As dificuldades do Governo em se posicionar de forma consequente residem, entre outros factores, na própria cultura das instituições que superintende; no excessivo peso do Estado na sociedade e na economia do país; e nas dificuldades da sociedade civil em ganhar autonomia a todos os níveis. Os problemas de comunicação inter-ministerial e intra-ministerial, que constituíam a norma no regime anterior, persistiram em parte, prejudicando o processo decisório, escamoteando a corência governativa e aliciando os titulares com os benefícios do poder pessoal, que acompanham a manutenção de sub-sistemas compartimentalizados.
A falta de clarificação no relacionamento entre o poder político e a administração pública, numa situação em que a administração pública recebida fora altamente partidarizada, aumentou os equívocos, deu origem a situações dúbias, que alguns chamam de perseguição, inibiu os titulares de arranjarem colaboradores de confiança e levou os mesmos a uma superintendência quase directa dos serviços, em detrimento das suas funções políticas. Outrossim, a enorme pressão exercida pela oposição, no sentido do Estado se manter essencialmente como agente de redistribuição de rendimentos e, também, contrária a políticas de liberalização da economia, reforçou as tendências do aparelho do Estado de continuar a reproduzir-se nos moldes antigos, com os consequentes efeitos no desenvolvimento do país e na sociedade. Finalmente, a própria dependência da sociedade em relação ao Estado, agora em pleno gozo dos direitos civis e políticos, fez com que crescesse de forma desmedida, as pressões reinvidicativas que invariavelmente têm acabado por ser politizadas.
Os choques sucessivos e directos sobre o sistema político, provocados pela exacerbação para além do razoável do espírito reivindicativo, e que atingiam particularmente o Governo, tendiam a colocar esse órgão de soberania numa posição de permanente defensiva. Em tal posição, via-se em dificuldades para responder resolutamente às intromissões ou saltos de competência dos outros órgãos que, acicatados ou apoiados pela oposição, punham em causa o funcionamento do modelo constitucional; também mostrava-se inibido em romper o círculo vicioso de políticas económicas e sociais que só provocam desarticulação social e dependência. O Governo era vítima de acções que, em tudo, contrariavam a vontade popular, livremente expressa, de construção de uma democracia e de rejeição completa de uma economia estatizada e aversa à iniciativa privada.
As dificuldades de comunicação com a sociedade, derivadas de entendimentos e posições equívocos quanto ao papel dos órgãos de comunicação do Estado em democracia tornou ainda mais difícil a tarefa de fazer face às tendências regressivas que persistem no sistema. As crises passadas pelo Governo confirmaram, entretanto, que o apoio popular, que colocou o país na actual senda, continua, em grande medida, bem vivo.
- Os Tribunais, em democracia, são órgãos de soberania que não têm funções de direcção política. Enquanto órgãos que a democracia postula como absolutamente independentes, receberam na nova Constituição, protecção expressa contra interferências do poder político, e particularmente contra quaisquer interferências do Governo, numa demonstração da forte reacção do legislador caboverdiano à subalternização a que os Tribunais eram submetidos na I República.
A proximidade do poder judicial do poder político viu-se, entretanto, estabelecida quando se deu ao Supremo Tribunal de Justiça as funções de Tribunal Constitucional. Noutros países, as funções próximas da direcção política do Tribunal Constitucional impõem que uma maioria significativa de magistrados e juristas que o constituem sejam eleitos. Em Portugal, por exemplo, dez dos juízes são eleitos pela Assembleia da República e os outros três são cooptados pelo colégio dos dez eleitos. Os juízes do Supremo Tribunal dos Estados Unidos são nomeados pelo Presidente e confirmados pelo Senado, precisamente porque a esse órgão é dado a função de verificar a constitucionalidade, ou não, das leis e actos dos demais órgãos de soberania.
Em Cabo Verde, a junção das competências do STJ e do TC abriu um possível espaço de interferência política dos magistrados judicias, considerando que os juízes designados pelo Conselho de Magistratura encontram-se em maioria ( 3-2) em relação aos outros, eleitos ou nomeados pela AN e pelo PR. Se ainda se tiver em conta os requisitos de elegebilidade para cargo de juíz do STJ e a função desse mesmo órgão, também como Supremo Tribunal Administrativo, vê-se que há fortes probabilidades para manifestações do espírito corporativo de titulares não eleitos de órgãos de soberania em relação a outros que detêm legitimidade directa.
O estado em que a magistratura nacional se encontrava no momento de implantação da democracia, derivado, nomeadamente, de anos de instabilidade e de pressões constantes do partido único, muito dificilmente poderia ser considerado de adequado para a assunção das extraordinarias funções que lhe foram atribuídas pela Constituição. A falta de resultados concretos no inquérito à polícia política, a morosidade em processos de particular importância no momento histórico vivido, designadamente, no que respeita aos direitos, liberdades e garantias, e o acto teatral e inédito de renúncia em bloco do Supremo Tribunal de Justiça, em Maio de 1992, são alguns exemplos de acções e omissões que não têm favorecido a emergência do Estado de Direito democrático.
A oposição, ao pressionar o STJ e o Tribunal de Contas no sentido de adoptarem uma postura de contra-poderes ao Governo, procura capitalizar sobre as atitudes reactivas, pessoais e institucionais, que os magistrados poderão ter desenvolvido na relação com o poder político, durante a vigência do partido único. A existência de canais susceptíveis de serem usados para interferir na direcção política do Estado, torna a eventual manipulação de magistrados judicias um perigo real, com consequências não só para o actual Governo como para a independência do poder judicial e para o processo de construção da democracia.
O processo de consolidação das instituições democráticas em Cabo Verde, com todas as suas contradições, incongruências e tentativas de fuga ao modelo jurídico-político vigente, deixa transparecer os seus pecados originais: a) os muitos equívocos políticos e institucionais que ficaram por resolver no processo de mudança de regime; b) as dificuldades comportadas por uma sociedade que, pela primeira vez, acorda para uma participação política plena, partindo de fraquezas profundas de ordem económica, social e cívica; c) finalmente, os problemas não resolvidos do processo histórico caboverdiano que, a dado momento, imbricou com eventos históricos monumentosos num contexto de relações internacionais, dominado por disputas ideológicas hoje completamente ultrapassadas.
A actual fixação nas questões que essas ideologias levantavam e nas interpretações que permitiam só poderia, evidentemente, provocar paralisia social e submergir a sociedade numa realidade ficciosa, carregada de efeitos perversos e de alienação.
Reformas política, contrariamente às revoluções, realizam-se na presença de fortes tendências para a continuidade nos domínios político, ideológico e institucional. O aprofundamento da reforma exige que o combate permanente seja travado nas diferentes frentes, o que só é possivel realizar com sucesso, nos casos em que a liderança política demonstra uma visão e uma inteligência excepcionais. A mobilização de apoio social e político, significativo em cada uma das fases da reforma, a identificação e modelação das forças que vão constituir esse apoio, e a contenção e confinação das resistências à mudança não, contituem, realmente, tarefa muito fácil.
Simplifica-se o processo se, porém, se verificar o engajamento completo não só da liderança política do país mas também das demais forças políticas e da globalidade da sociedade, numa acção consciente e consequente de abandono das questões, que outrora polarizaram opiniões, condicionaram relações e definiram posturas pessoais e de grupos. A atenção social e política deve concentrar-se no que o modelo político, económico e social, consensualmente estabelecido, oferece e exige para uma exploração correcta das suas potencialidades. As tentações de introduzir elementos novos, a meio de jogada, de reinvindicar favores especias e de reclamar exclusividade de protagonismo teriam que ser coarctadas por acções esforçadas e colectivas.
A resistência interiorizada ao que é diferente, a relação conflituante de amor/ódio ao poder e o individualismo excessivo e perverso devem ser encarados como um mal que só será vencido num processo de densificação e complexificação das relação sociais e cívicas e de contínua institucionalização. Aí, ninguém poderá pretender fugir à sua responsabilidade de cidadão e ao seu dever para com as gerações actuais e as futuras
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