A sociedade e o Poder em Cabo Verde (II)
Humberto Cardoso
27/2/95
No periodo colonial, o Poder era remoto e estrangeiro. O país extremamente frágil económicamente e sujeito a crises periódicas, muitas vezes devastadoras, vivia quase que permanentemente no limiar da sobrevivência. Os caboverdianos, com tais condicionalismos de existência, encontraram formas de estar e de viver em sociedade que minoravam os custos de uma sobrevivência precária e diminuiam as incertezas do futuro: Desenvolveram vários modelos de solidariedade social e de entre-ajuda e inculcaram nos filhos um sentimento forte de apêgo à família e à terra; nos meios rurais, forjaram relações complexas com os proprietários que, para a sua perenidade e sustentabilidade, incluíam não só as relações específicas de exploração da terra como também relações familiares ou quasi-familiares.
O equilíbrio social baseava-se, portanto, em processos de construção e reprodução de confiança mútua entre os indivíduos, no respeito pelo princípio de reciprocidade e na consciência de que as incertezas do futuro só poderiam ser enfrentadas colectivamente. Diferia, naturalmente, de ilha para ilha, consoante as especificidades próprias, nomeadamente, históricas, económicas, grau de urbanização e regime de propriedade de terra. Mas, revelava-se precário onde subsistiam as formas primeiras de exploração das terras, cedendo lugar a espaço para desconfiança entre as pessoas e fomentando o aparecimento de fenómenos socialmente divisivos como clanismos, clientelismos e patronagens.
As relações sociais nas comunidades espalhadas pelas ilhas, fossem elas mais ou menos horizontais e solidárias ou mais ou menos verticais e hierarquizadas, não eram grandemente afectadas pelas instituições do poder colonial que, em qualquer dos casos, se mantinha a uma certa distância. Os indivíduos e os grupos sociais, pela própria lógica do poder reinante, não tinham acesso directo aos mecanismos e processos de decisão dessas instituições, e, por isso, não as podiam usar para proveito próprio ou para se imporem em relação aos outros.
O início de uma participação política massiva da sociedade, nos meses que antecederam a independência nacional, modificou tudo. A liberdade conquistada derrubou os obstáculos que, até então, inibiam os indivíduos e os grupos sociais de perseguirem os seus interesses para além do espaço estritamente social e económico. Mas, o monópolio da direcção política do país, cedo alcançado pelo PAIGC, com a sua orientação totalitária e de profunda desconfiança em relação aos interesses privados e às elites que os representavam, revelou-se um poderoso travão a tais pretensões. Não eliminou, porém, a tentação de utilização do mundo político e das instituições para benefício próprio.
A aparente contradição, que a nova situação criava entre a oportunidade de manifestação de interesses e a ideologia dominante de exclusão dos mesmos, foi resolvida pela destruição, neutralização ou confinação, conforme os casos, das elites nacionais, tanto nos meios rurais como nos meios urbanos. O partido único, esse, reservava a si mesmo os mecanismos próprios de manifestação de ambições individuais.
A politização da sociedade, segundo os cânones do marxismo-leninismo e da ideologia das lutas de libertação africanos, tinha introduzido referências sociais de confronto e divisão, nomeadamente:
- a luta de classes que oporia parceiros/rendeiros aos proprietários, e as massas trabalhadoras ao patronato;
- a aliança “natural” das classes nacionais, proprietárias de terra e burguesia comercial, com forças do colonialismo português e do imperialismo internacional.
Com essas referências, a participação política da sociedade, rapidamente, se enveredou por um caminho, que não podia deixar de resultar na quebra dos equilíbrios sociais, até então existentes. Uma verdadeira revolução tinha lugar.
As resistências colocadas por elementos das elites económicas e intelectuais do país foram completamente varridas nos meses que seguiram à Revolução de Abril. Valores e tradições sossobravam sob o ímpeto da nova ideologia, à medida que as organizações do PAIGC se afirmavam como poder em todo o território. A prisão e o exílio de muitos a partir de Dezembro de 1974 eliminou as frágeis tentativas de uma perspectivação do futuro político diferente do dessa força política.
O processo de desarticulação social acelerou-se após a independência quando o novo Governo aprofundou as políticas seguidas pelo Estado Novo de Salazar: a centralização do poder estatal, e a abertura de frentes de trabalho para minorar os efeitos devastadores das secas.
O crescimento acelerado do aparelho do Estado teve, entre outras, as seguintes consequências :
· criou uma enorme procura de colocações no funcionalismo, incentivando, assim, as tendências, verificadas durante o regime colonial, de utilização dos serviços públicos como via de ascensão social;
· confinou os que detinham alguma formação académica à proximidade controladora do Estado, subtraindo-os completamente a um activismo social ou político autónomo;
· provocou um fluxo migratório poderoso em direcção à capital proveniente de todas as ilhas e do interior da ilha de Santiago;
· forçou a integração política nacional de todas as comunidades espalhadas pelas ilhas, pela via de uma dependência extrema em relação aos centros de decisão;
· introduziu um factor de perturbação no processo de urbanização da sociedade tradicional, não baseado em actividades económicas potencialmente vantajosas mas, sim, na atracção pelos centros de redistribuição, de rendimentos não produzidos localmente;
· acentuou o direccionamento do processo educativo para produção de quadros para a função pública e para as necessidades partidárias, em detrimento de formações técnico-profissionais;
· continuou a depauperização humana das ilhas, pela concentração dos recursos humanos na capital e sua confinação em espaços pouco propícios a activismo social ou intelectual, resultando num empobrecimento global do país e num processo massivo de desenraízamento dos indivíduos;
A organização compreensiva dos trabalhos públicos chamados de frentes de alta intensidade de mão de obra (FAIMO), se respondia a um objectivo nobre, de não deixar a grande parte da população rural à fome nos tempos de seca, também correspondia a uma política específica de destruição das relações sociais no campo que, até então, tinham vigorado no país. A persistência desses trabalhos públicos para além dos primeiros anos após a indepêndencia, que se pode considerar anos de emergência, e, ainda, o seu posterior alargamento denota uma estratégia de poder e de desenvolvimento que encontra a sua justificação plena no modelo autárcico adoptado.
Os trabalhos das FAIMO tiveram efeitos altamente comprometedores de toda a estrutura social rural, designadamente os seguintes:
· engajaram um número crescente de pessoas em actividades com retornos pouco perceptíveis, a curto e médio prazo;
· levaram a uma baixa inexorável da productividade, pelo carácter de permanência que adquiriram, quando se fechou outras potenciais saídas para a absorpção do excedente de mão de obra do país;
· dissuadiram a diferenciação profissional dos trabalhadores que, outrora, detinham várias profissões como forma de conseguirem um rendimento adequado;
· deformaram o mercado de trabalho nos meios rurais pela a introdução de facto de um rendimento mínimo - o salário nas frentes - e pela moneterização de toda a relação proprietários/trabalhadores assalariados. Eliminou-se, assim, todo o conjunto de compensações extras que constituíam o cimento das relações sociais no campo, particularmente efectivas em tempos de dificuldades colectivas, levando a uma real prolaterização do trabalhador rural. Outrossim, nenhum incentivo de investimento foi feito para dinamizar a produção agrícola. Pelo contrário;
· constituiram uma arma extrordinária contra as elites rurais, quando se tornaram quase compulsivo, porque o risco de o trabalhador ser cortado da folha em caso de ausências de um ou mais dias, dissuadiu-lhe completamente de procurar emprego nos privados e, mesmo, de ter uma economia doméstica. Um círculo vicioso tendia a estabelecer-se: O Estado organizava as FAIMO porque não havia trabalho para a população rural; os trabalhadores eram dissuadidos de procurar emprego junto aos privados pelas regras que governavam as FAIMO; não havia investimento porque a mão de obra era escassa e cara; o Estado era obrigado a absorver um número crescente de trabalhadores;
O que se seguiu à independência foi a aceleração rápida do processo de desarticulação da sociedade tradicional que inicara décadas anteriores sob o efeito conjunto da emigração, da urbanização, do crescimento do aparelho administrativo salazarista e da organização dos trabalhos públicos do APOIO. O acesso à ajuda externa e a outras fontes de financiamente, que acompanhou a ascensão à independência nacional, e as políticas de centralização e de desenvolvimento autárcico adoptadas pelo PAIGC constituíram o motor de toda transformação rápida de valores, costumes e formas de estar e de relacionar, que a sociedade, fragilizada por séculos, não tinha como responder com a necessária rapidez.
A tentativa da liderança do país de inculcar novos valores, consubstanciada no projecto de criação do homem novo, falhou por completo, deixando um vazio que o cinismo e o individualismo perverso se apressaram por preencher. Os valores da clique dirigente eram valores de uma organização totalmente estranha à orgânica social do país, não obstante a existência no seu seio de alguns caboverdianos em lugares proeminentes de direcção. Outrossim, a necessidade que manifestava, de desarticular a estrutura social, como requisito para a sua implantação, retirou-lhe qualquer hipótese de uma ligação intima com a sociedade, mantendo-se, portanto, como um autêntico corpo estranho, que se reclamava de uma falaciosa legitimidade.
O poder e as suas instituições tinham, em tal contexto, a missão de primeiro conservar e consolidar a liderança do grupo de caboverdianos vindos da Guiné e, segundo, proceder à preparação do terreno para um controlo completo da sociedade. Para isso, tinham que centralizar, tinham que se transformar no maior empregador e tinham que eliminar ou confinar actividades económicas autónomas. Nessa lógica, também, era preciso manter os emigrantes e os investidores estrangeiros, fontes de potenciais rendimentos independentes, convenientemente afastados. Por outro lado, tinham que se esforçar por canalizar a participação política da população para estruturas especialmente criadas e controladas para o efeito.
Isso significava o estabelecimento de relações verticais, altamente hierarquizadas, às quais os indivíduos muito dificilmente conseguiam escapar. Também significava que relações horizontais de caracter associativo e cívico eram desencorajadas ou devidamente absorvidas pelas estruturas do poder. Avenidas, bem demarcadas, de mobilidade social foram estabelecidas para cujo acesso eram requisitos indispensáveis a lealdade e a fidelidade aos dirigentes. A heterogeneidade marcante, em termos de personalidade, da liderança e as lutas pelo poder no seio do grupo levou, entretanto, à emergência de clientelismos pessoais à volta das figuras rivais mais proeminentes.
As instituições que se implantaram após a independência eram, portanto, inatingíveis e insensíveis à dinâmica social, mas completamente abertos aos desejos clientelísticos da nova e única elite do país. Os laços tradicionais de solidariedade e de entre-ajuda e a consciência da necessidade de acções colectivas, para enfrentar o futuro, progressivamente desvaneceram-se, cedendo lugar a relações de cada vez maior dependência do Partido, do Estado e das suas instituições. O indivíduo, sem o amparo social e comunitário e à mercê do empregador principal - o Estado -, era compelido a utilizar os canais disponibilizados pelo Partido e as suas organizações, para se manter e para ascender socialmente. O esforço e o mérito pessoais de pouco relevância se mostravam perante os novos critérios de selecção.
O sentido de procura do bem comum e do interesse geral da colectividade não chegou, efectivamente, a evoluir para a noção do interesse público, representado e defendido formalmente pelas instituições nacionais. A “militância”foi introduzido como a ratio moral para o engajamento das pessoas em qualquer actividade com implicações públicas e comunitárias. Quando, porém, a participação política deixou de oferecer o estímulo e a satisfacção que se pode retirar do envolvimento em acontecimentos monumentosos, a militância cedeu lugar a um progressivo cinismo, com os indivíduos a competirem entre si por migalhas do regime.
Em tal contexto, as instituições, no essencial da sua actuação, não defendiam interesses públicos e, muito menos, tinham o que alguns autores chamam de dimensão moral, ou seja, a moralidade que implica confiança e previsibilidade na realização dos interesses comuns. O clientelismo, o subjectivismo e a arbitrariedade passaram a ser norma e as relações sociais tornaram-se cada vez mais verticais e hierarquizadas com surtos de violência para confinar os comportamentos politicamente incorrectos.
Uma outra consequência foi a rarefacção de actividades de carácter social, cultural e intelectual, a degradação dos hábitos cívicos e de convivência e a confinação progressiva do indivíduo à defesa e procura de satisfacção dos interesses e necessidades da sua familía nuclear. Exceptuando as desportivas, as associações quase que desapareceram ou - como é o caso das cooperativas - foram desvirtuadas por interesses de ordem partidária. A elevação do nível de escolaridade não teve o retorno esperado no desenvolvimento de uma capacidade nacional de pensar e conceber, mas aumentou a oferta dos indivíduos que podiam ser cooptados pelo sistema, na sua ânsia de subsistir e reproduzir-se. Enquanto factor de ascensão social no contexto descrito, a educação servia como mais um elemento de desenraizamento das pessoas, colocando-as, muitas vezes, em conflito com as suas próprias origens e alimentando ambições desmedidas e insaciáveis. Na prática, fabricando criaturas frustradas e cínicas e sem referências fundamentais.
O Poder político fundamentava-se, essencialmente, no seguinte:
- a legitimidade advinha do protogonismo de uma organização política num acto histórico perfeitamente datado - a luta anti-colonial - considerado crucial para o país;
- a soberania era reconhecida como sendo popular para logo ser entregue à tutela da força dirigente da sociedade e do Estado que a exercia no interesse das massas populares;
- a força dirigente era tida como anterior ao Estado ao qual deu origem e orienta, gozando, mesmo, durante cinco anos do estatuto de instituição supranacional;
A estrutura adoptada do poder político traduzia a íntima relação que o Partido devia ter com o Estado, detendo o controlo completo das suas actividades.Assim,
1. A Assembleia Nacional Popular, constituída por deputados eleitos a partir de uma lista única, era tida como órgão supremo do poder do Estado. Formado na sua esmagadora maioria por militantes do partido, entre os quais, os principais dirigentes, elegia de entre os seus membros o Presidente da República e o Primeiro Ministro. Os exercícios de participação política à volta das listas únicas a apresentar às eleições, ritualmente desenvolvidos pelo Partido, acabaram por introduzir alguns deputados independentes na última legislatura que, sem fazer destoar demasiado a voz monocórdia da ANP, imprimiu-lhe, contudo, uma certa dinâmica. Algum protagonismo desse órgão do poder do Estado, não obstante o seu papel de facto subordinado no sistema, resultava, ainda, da personalidade do seu presidente e da posição destacada deste na liderança partidária. A ANP seria modelada de acordo com as necessidades de afirmação desse alto dirigente, o único de entre os seus pares a ser afastado dos órgãos executivos.
2. O Presidente da República era o secretário-geral do Partido, com poderes reais de governação: presidia a todos os Conselhos de Ministros e detinha uma tutela especial sobre os Negócios Estrangeiros e a Segurança do Estado. Embora constitucionalmente subordinado à ANP, o PR, pela sua postura e actuação, no país e no estrangeiro, representava a total supremacia do executivo sobre os demais órgãos do Estado, que o regime de partido único naturalmente pressupõe. Isso concorreu para que a Presidência da República desenvolvesse uma cultura institucional muito própria (modelada sobre práticas paternalistas, intervencionistas e pessoalistas de condução dos negócios do Estado, semelhantes às que se verificavam em certos estados africanos, com idênticos sistemas políticos) que se reflectia, particularmente, nas relações institucionais e com a sociedade.
3. O Governo, presidido pelo segundo homem na hierarquia do Partido, era constituído pelos principais dirigentes deste, estando as pastas mais importantes com os mais destacados de entre eles. A quase absoluta independência do núcleo dirigente em relação aos restantes militantes e ao próprio funcionamento da organização, em virtude da sua condição de únicos portadores da legitimidade histórica, tornava-os virtualmente inamovíveis das suas posições no Governo. Essa condição libertava-os para o jogo de poder no seio do grupo e para uma utilização pessoalizada das instituições sobre a sua tutela directa. Daí uma espécie de esquizofrenia do Governo, que se traduzia, designadamente, nas dificuldades de comunicação interministerial, na ausência de coerência governativa e em perturbações graves no processo de decisão.
4. Os Órgãos Judiciais, vistos como órgãos menores, sofriam a pressão das tentativas da sua partidarização, sendo a Procudoria da República a mais sensível ao assédio da polícia e, particularmente, da polícia política. As intromissões do poder político e o pouco prestígio associado ao exercício dessas funções criaram grande instabilidade no quadro dos magistrados e constituíram factores de tensão entre esses e os advogados do foro como é patente nas cartas abertas publicadas no jornal “Voz di Povo” de 1/10/88 e 19/10/88. Outrossim, a situação desses órgãos não contribuiu para que o país acumulasse conhecimentos técnico-jurídicos de monta e se constituisse uma jurisprudência própria, que servisse de orientação ao país no seu caminho em direcção à modernidade.
. A Administração Pública foi completamente partidarizada. Exigia-se a todos os funcionários juramentos de lealdade ao Partido e as carreiras estavam condicionadas, em grande medida, a demonstrações da lealdade partidária e também de fidelidade pessoal ao ministro do departamento do Estado em que estavam enquadrados. A extrema centralização do país fazia depender dos departamentos do Estado decisões das mais corriqueiras às mais importantes, provocando estrangulamentos terríveis. Igualmente, a excessiva politização dos assuntos de serviço, como aliás de tudo no país, intimidava os estruturas intermédias e fazia-as remeter para as instâncias superiores decisões sobre todas as questões, mesmo aquelas que se mostravam remotamente controversas. A falta de comunicação intraministerial e interministerial era agravada com a tentação generalizada de gerirem o seu quintal, não passando informações nem coordenando com os outros, sempre na tentativa de tirar dividendos do que ia sendo realizando.
Existia, portanto, uma verdadeira unicidade do poder político, situando o executivo bicéfalo do presidente da República e do Primeiro Ministro no centro da constelação dos órgõs do poder do Estado. Os caboverdianos, desprovidos de importantes direitos civis e de todos os direitos políticos, apercebiam-se do que se passava, através de uma mistura de comunicação institucional e de acções de agitação e propaganda, conduzida pelos órgãos de comunicação do Estado e pelas organizações do Partido. Entretanto, à medida que crescia o aparelho do Estade, crescia o sector público da economia e se alargavam as frentes de alta intensidade de mão de obra (FAIMO), a sociedade era paulatinamente desarticulada e feita dependente.
Porém, a incapacidade do regime em cobrir completamente o país com o seu manto totalitário iria revelar-se claramente, na segunda metade da década de oitenta. As feridas abertas por tensões permanentes a nível social, económico e político acabariam por fazer o regime entrar numa crise que, não obstante as tentativas feitas em a contornar (III Congresso do PAICV e “abertura política de1990”), conduziria à derrocada completa.
Após as eleições livres e pluralistas de 13 de Janeiro de 1991 iniciar-se-ia a tarefa de criação de instituições democráticas. O crescimento súbito da participação política da sociedade caboverdiana, que se operou no ano de 1990, abriu, a exemplo do que acontecera em 1974, uma outra oportunidade para a edificação de instituições políticas que reflectissem os valores e princípios da nação e que fossem instrumentos da sua afirmação e da realização de objectivos que a comunidade consensualmente se propusesse.
Não seria uma tarefa fácil, porque à partida não só estava viciada pelas tentativas da elite em se manter influente e apegada aos seus privilégios, mas também porque a reserva moral e cívica da sociedade tinha sido delapidada por anos de um processo de atomização social, que ameçara de erradicar qualquer sentido de pertença à comunidade e, por conseguinte, da necessidade de colectivamente se lançar na procura do bem comum. O individualismo perverso, produzido pelo regime, no acto de dissolução dos laços sociais tradicionais, iria traduzir-se num tremendo lastro de dificuldades no processo de institucionalização que se impunha. O clientelismo, como sistema de poder de indivíduos e grupos que se cristalizara nesse período, seria uma permanente tentação, particularmente quando o monopólio da elite dirigente do país tinha sido quebrado e a possibilidade de expressão de interesses se tornava uma realidade.
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