A problemática da cessação de mandato
Humberto Cardoso
2/5/94
Eventos políticos no seio do MpD, o partido com maioria no parlamento, desembocaram no afastamento de importantes dirigentes que, coincidente mente, ocupam lugares de deputado da Nação. Em face disso, os efeitos do que, em outra situação seria matéria privada do MpD, não deixam de se fazer sentir sobre o parlamento e ai atingir toda a colectividade nacional.
Porque põe-se o problema: o que vai acontecer a seguir? Vão os dirigentes afastados posicionar-se como um novo grupo parlamentar, mesmo que informalmente, ou vão se manter individualmente como independentes? O MpD, perante a sangria, vai procurar reaver os mandatos que, em seu nome, esses deputados detêm? E, na impossibilidade de os reaver, será que ainda terá maioria para sustentar o Governo?
Paralelamente, questões fundamentais que vão ao centro do próprio conceito da democracia representativa terão que ser reavaliadas a luz dos acontecimentos presentes e dos que se anunciam para o próximo futuro: Qual e o papel dos partidos políticos? De quem e afinal o mandato? Dos deputados ou do partido? Qual e a relevância de tudo isso para o sistema democrático e para a sua estabilidade?
Todas as democracias, particularmente as de forte pendor parlamentar como a nossa, num momento ou outro da sua evolução, foram obrigadas a confrontarem-se com esses problemas. A forma como os resolveram foi determinante para sua consolidação e para a interiorização, por uns e por outros, do seu papel e responsabilidade no sucesso do sistema politico, consensualmente aceite.
Um exemplo relativamente recente e próximo e o caso português.
Durante os debates na especialidade na Assembleia Constituinte que em 1976 aprovou a actual Constituição Portuguesa, o artigo 49 que regula a perda e renuncia ao mandato dos deputados, pelas suas implicações, foi dos artigos que mais polémica causou. O texto do Ante-Projecto da Constituição apresentava o referido artigo da seguinte forma:
Art 49 (Perda e renúncia de mandato) - 1- Perdem o mandato o os deputados que: a)... ; b)... ; c) Se inscrevem em partido diverso daquele pelo qual foram apresentados a sufrágio:
d) Deixem de pertencer ao partido politico pelo qual foram apresentados a sufrágio, desde que o partido requeira a sua substituo;
Se a alínea c) mereceu unanimidade dos presentes, já a alínea d) foi objecto de grande controvérsia. Constitucionalistas portugueses de renome, como Vital Moreira e Jorge Miranda, então deputados respectivamente pelo PCP e PPD na Assembleia Constituinte, defrontaram-se abertamente na apreciação desse artigo. Excertos das suas intervenções:
Deputado Vital Moreira: "...esta alínea.. corre o risco de contribuir para aquilo a que poderemos chamar uma hiperpartidarizacao da vida politica, em termos de não só reservar exclusivamente aos partidos a apresentação de candidaturas, mas inclusivamente, tal como aqui se mostra, ou tal como aqui se propunha, de fazer perder o mandato aqueles deputados que, por razoes que podem ser razoes politicamente de grande relevância, venham a ter de perder o mandato".
"..Não se compreende que perca o seu mandato um deputado que deixe de pertencer ao partido por que foi eleito, especialmente se se não tiver em consideração as circunstancias em possa ter deixado de pertencer ao partido. E que podem ser múltiplas as situações em que os deputados deixem de pertencer aos partidos por cuja lista são eleitos: podem abandonar, podem ser expulsos, e podem ser expulsos por vários motivos. De resto, os eleitores não elegem apenas partidos, elegem pessoas e escolhem, acima de tudo, programas políticos, ou, pelo menos, votam na base de uma certa imagem politica".
Deputado Jorge Miranda: "... nos temos de raciocinar a face da situação concreta em Portugal. E temos de nos recordar da experiência do fim da monarquia constitucional e da I Republica democrática neste pais. E essa experiência mostra que uma das causas principais da queda da monarquia constitucional, primeiro, e, depois, da degradação do sistema parlamentar durante a I republica democrática, foi precisamente a pulverização partidária, a instabilidade partidária, a possibilidade dos deputados eleitos por certos partidos poderem mudar desses partidos para outros partidos. (...) Admitir que, devidos aos humores ou devido a problemas de consciência de certos deputados, a maioria parlamentar, a maioria governamental, venha a ser abalada, e contribuir gravemente para a não conservação da democracia politica..."
"Também foi dito que esta regra [alínea d)] poderia por em causa a personalidade dos candidatos, dos deputados eleitos, que seria uma arma de chantagem politica contra os deputados. Não me parece, porque pelo menos um deputado que deixa de concordar com a pratica ou com o programa do seu partido teria sempre o direito de renunciar ao mandato, de explicar aos seus eleitores que já não podia pertencer a esse partido e de pedir o juízo da opinião publica. O que não me parece certo e dizer que a minoria que sai de um partido por dizer que o programa desse partido deixa de ser cumprido, que tem razão contra a maioria que fica no partido e que continua a sustentar que a pratica do partido e fiel ao programa".
A problemática que na época dividiu os deputados da Assembleia Constituinte portuguesa e encarada hoje pela nossa jovem democracia de forma muita concreta.
A nossa Constituição a semelhança da Constituição portuguesa aprovada em 1976 não contem a disposição que tornaria automática a resolução do problema posto por deputados que deixassem ou fossem expulsos do partido. Isso considerado, a situação vivida actualmente em Cabo Verde abre um espaço fértil para um debate, que a ser conduzido com urbanidade e preocupação pelo aprofundamento da experimentação democrática em progresso no pais, poderá revelar-se enriquecedor e confortante para todos, na medida em que reforçará o sentimento que estamos no mesmo barco e que a responsabilidade de o manter a flutuar e a avançar e de todos.
A menos de duas semanas da sessão da Assembleia Nacional os principais actores do drama que se desenrolara no Plenário da AN são, sem duvida, os dissidentes do MpD e o Grupo Parlamentar deste partido politico.
- O grupo de dissidentes do MpD afirma o seu direito a manutenção do mandato, mas ao mesmo tempo, a maioria deles, senão todos, esta engajada num conjunto de actividades politicas que deixam entender ao publico que um novo partido politico encontra-se em fase avançada de gestação.
Numa reunião realizada em S.Jorge, no dia 17 de Abril o grupo investiu mesmo uma comissão instaladora, presidida pelo Dr. Eurico Monteiro, para esse fim. Alias, desde de 19 de Janeiro, data em que esses ex-dirigentes do MpD se pronunciaram publicamente fora do processo eleitoral que conduziria a convenção extraordinária do MpD, tem-se multiplicado em declarações publicas que apontam para a criação de uma terceira forca capaz de, nas eleições gerais, disputar o poder ao MpD.
A duvida que fica e: em face dos seus objectivos políticos, quais as intenções em estar presente na sessão da AN que se aproxima. A oportunidade para desencadear um debate sobre a titularidade do mandato ou a tentativa de retirar dividendos políticos que poderão ser capitalizados a curto ou médio prazo pelo partido emergente?
Não nos parece que o objectivo seja simplesmente académico ate porque o parlamento, pela sua própria natureza e função, não e o lugar ideal para esse tipo de confrontos. Resta pois considerar objectivos de carácter politico. Mas aqui questões de extrema importância se colocam que não só dizem respeito ao papel do órgão de sobejaria - o parlamento - como também a estabilidade do sistema e, ainda, a postura dos políticos e partidos no seu relacionamento com o sistema politico. Senão vejamos:
1- A figura do deputado independente fora do grupo parlamentar dos partidos representados no parlamento e perfeitamente permissível. Decorre da flexibilidade que e permitida pelo preceito constitucional que diz: "artigo 182 1-Perdem o mandato os deputados que: d) se inscrevem em partido diverso daquele por que foram eleitos". Ou seja, um deputado que por razoes diversas deixa o partido por que foi eleito mas não se sente compelido a juntar-se a outro tem o direito de se manter no parlamento.
E o caso, entre nos, p. ex., do deputado David Hoffer Almada, que deixou a bancada do PAICV e o caso do deputado Amândio Carvalho que escolheu deixar o grupo parlamentar do MpD mas reiterando o seu apoio ao programa desse partido e aos objectivos por ele preconizados.
Com essa flexibilidade evita-se o que o doutor Vital Moreira no texto acima chama de "hiperpartidirizacao" da vida politica, neste caso, do parlamento.
2- Ultrapassam, porem, os limites de flexibilidade possível os deputados que se afastam da sua bancada e posicionam-se, mesmo que informalmente, como um novo agrupamento parlamentar. A este propósito, os professores Vital Moreira e Canotilho Gomes expõem o seguinte na obra Constituição Portuguesa anotada, pg 249, 2 volume:
"A figura dos chamados agrupamentos de deputados independentes (...) não possui fundamento constitucional expresso, sendo de questionar se e conforme aos princípios constitucionais permitir que deputados eleitos pelas listas de um partido (ou coligação de partidos), que não se integrem ou deixem de integrar o respectivo GP, constituam organizações parlamentares formais, fora e a margem dele. Seguramente contraditória com a filosofia constitucional e a figura regimental de agrupamentos parlamentares (..) que permite conferir expressão parlamentar própria a partidos políticos que se não apresentaram directamente ao sufrágio e cujos deputados foram eleitos como independentes em listas de outros partidos".
3- Também, com ainda maior razão, não se pode aceitar o aparecimento de um novo partido no parlamento, a meio da legislatura. Sustentando este ponto de vista, os mesmos autores na obra citada, pg 160, dizem o seguinte:
"(..)A isso se opõem manifestamente a razão de ser da reserva constitucional da candidatura para os partidos políticos, bem como o principio democrático, que exigem que só pode alcançar representação parlamentar os partidos que se apresentem como tal ao eleitorado e que, sozinhos ou em coligação, obtenham apoio eleitoral suficiente para fazerem eleger deputados".
A hipótese de aparecimento de um novo partido no parlamento e de se colocar, na medida em que a posição dos ex-dirigentes do MpD tem sido, no mínimo, dúbia: estão, confessadamente, em processo de formação de um partido politico, ao qual, parece, não procuram levar ao seu termino, o reconhecimento da sua personalidade politica, para evitar a perda de assento parlamentar aos seus principais dirigentes.
Essa atitude explica-se considerando que, como diz o doutor Marcelo Ribeiro de Sousa no seu livro "Os partidos políticos no Direito Constitucional português, (pg 426), o partido politico não existe antes de tal inscrição e não e admitida perante a ordem jurídica portuguesa a figura do partido politico não personalizado ou sem personalidade, já que o estatuto jurídico constitucional e legal do partido politico - nomeadamente os seus fins e funções - supõem necessariamente a sua personalização". Porem, segundo o mesmo autor na pg 543 da obra citada, "a Constituição e também a lei impõem a existência de partidos políticos, como que forçando a sua institucionalização. Mas deixam a iniciativa dos particulares o desencadeamento do processo da constituição especifica desses partidos.
Estamos pois perante a situação de termos cidadãos fazendo uso das liberdades garantidas na Constituição para se associarem em partido politico mas que se refreiam de dar o passo fundamental, a inscrição no Supremo Tribunal. Porque, para a realização dos seus fins e funções enquanto partido politico, pelo menos neste momento, ou para esta sessão da AN, não precisam de personalidade jurídica, pois estão em condições de infiltrar um órgão de soberania pela via dos mandatos que detêm, conseguidos em nome de outro partido.
Não se pode, no entanto, contornar o facto de que, embora pretendam ficar a um passo de aquisição de personalidade jurídica, esses cidadãos já estabeleceram entre si laços baseados na comunhão de certos ideais políticos, já traçaram objectivos específicos e já delinearam estratégias para consecução dos mesmos. Mais, as declarações publicas e escritos nos jornais, nas quais se tem mostrado profícuos nos últimos meses, deixam bem claros as suas posições e intenções politicas, a curto e médio prazo. Não poderão, portanto, aparecer no Parlamento como "deputados independentes", isolados e não comprometidos, a exemplo de Amândio Carvalho e David Hoffer Almada e, muito menos, como integrantes do Grupo Parlamentar do partido pela lista do qual foram eleitos, mas com cujo Programa estão, aberta e expressamente, em oposição.
4 - Se se der credito completo as declarações do Dr. Eurico Monteiro no programa "Frente a Frente" da TNCV, após o abandono do processo eleitoral interno do MpD, fica-se com a ideia de que o recurso a todos estes subterfúgios para participar na sessão de Maio da AN de Maio enquadra-se na confessada estratégia de desestabilização do Governo. Se, por outro lado, se considerar o risco de penalização politica que poderão incorrer perante a opinião publica e, em tempo próprio, perante o eleitorado nacional por praticas pouco convencionais e que distorcem os procedimentos exigidos aos políticos e as forcas politicas em democracia, e de se perguntar quais as motivações e objectivos deste passo tão perigoso para o seu futuro politico.
Será simplesmente ressentimento pela sua exclusão do partido? Ou então, e o desejo de Poder, aqui e agora, que não deixa esperar pelas eleições de 1996 e, portanto, obriga que se procure derrubar o Governo para que as eleições sejam antecipadas ainda para este ano?
5 - Um dos princípios fundamentais da democracia e o principio da alternância politica. Quer dizer que a democracia pressupõe a realização de eleições periódicas para que através delas "(..) legitima-se democraticamente a conversão da vontade politica em posição de poder e domínio, estabelece-se a organização legitimante de distribuição dos poderes; procede-se a criação do pessoal politico e marca-se o ritmo da vida politica de um pais" (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, pg. 436).
Ninguém parece ter duvidas, nem mesmo o PAICV (a acreditar no seu "slogan" do tempo de antena na RNCV), que em 1996 teremos eleições. Portanto, e só uma questão de esperar e de se preparar para o confronto eleitoral. Opções por derrube ou desestabilização do Governo a meio da legislatura revelam uma deficiente interiorização dos princípios e procedimentos democráticos e prestam um mau serviço a um pais que, pela via de aprendizagem contínua, vai singrando na sua experiência pelos caminhos da democracia, apesar do enorme lastro deixado pelo seu passado colonial e por quinze anos de totalitarismo.
- O Movimento para Democracia (MpD), presumivelmente ainda senhor de uma maioria confortável, mas que, naturalmente, espera reaver os mandatos daqueles que deixaram as suas fileiras, assumindo posições incompatíveis com os princípios da sua filosofia politica e as linhas mestras do seu programa politico e manifestando ate a sua disponibilidade para alianças com a oposição parlamentar.
Reaver os mandatos esbarra, porem, com o preceito constitucional que restringe a perda de mandato só aos casos de inscrição num outro partido. Não obstante, a questão esta longe de ser pacifica e toca mesmo a problemática da natureza do mandato.
O professor Gomes Canotilho enuncia esse problema no seu livro "Direito Constitucional", pg 437, quando diz: " Um problema suscitado pelo principio da imediaticidade [do voto] e o da permanência, como deputado, do candidato eleito que abandona a lista (ou partido) que foi objecto de votação imediata pelos eleitores. Se a votação por lista escolhida pelos partidos tem sido considerada como compatível com o principio da imediação, já o abandono do partido na lista do qual foi eleito pode levantar problemas quando se encarar com todo o rigor o principio de imediaticidade do sufrágio. Os mesmos problemas se põem quando existam fraccionamentos de partido ou novas formações partidárias. A favor da manutenção do mandato invoca-se o principio da representação: o deputado representa o povo e não os partidos e pode inclusivamente ser um candidato independente. A favor da perda do mandato esgrime-se com o facto de o deputado que abandona o partido renunciar, de facto, ao seu mandato como deputado".
Nas paginas 743 e 744 da obra citada , o professor Gomes Canotilho aprofunda a questão:
" A compreensão juridico-constitucional da representação parlamentar não se reconduz ao modelo representativo liberal. Há que ter em conta que a relação deputado-eleitores e hoje substituída por uma referencia triangular, onde avultam a relação entre os eleitores e os partidos e a relação entre os partidos e os deputados, alem, e evidente, da referida relação eleitores-representantes. Dai que se afirme a prevalência do mandato do partido sobre o do eleitorado (DUVERGER) e se considere a dependência de deputado em relação ao partido como o sucedâneo funcional do mandato imperativo (BOBBIO).
Esta relevância constitucional da relação deputados-partidos esta expressa, por ex., no facto de as eleições parlamentares implicarem necessariamente a mediação partidária (..), na existência de grupos parlamentares com base partidária (..), no regime de constituição das comissões parlamentares (..) e na forma como o Estatuto de Deputados (..) regula as vagas e substituições de deputados".
A estreita ligação entre o deputado e o partido que o fez eleger encontra, entretanto, os seus limites na proibição do "mandato imperativo". Isso e expresso pelos professores Vital Moreira e Gomes Canotilho no livro "Constituição Portuguesa anotada", pg 177: "Note-se designadamente, que os deputados não podem ser destituídos pelos eleitores, nem demitidos pelos respectivos partidos, nem expulsos pela própria Assembleia da Republica".
O impasse que isso pode provocar e, normalmente, resolvido pelos partidos noutras paragens através nomeadamente: "a) demissão em branco, assinada antes de assunção do mandato; b) contrato inominado e disposição antecipada do mandato, em que o deputado se obriga a pedir demissão quando o partido o solicita; c) demissão em caso de abandono do partido, como norma consuetudinária ou de cortesia".
No nosso caso em que o MpD não se acautelou antecipadamente, fica o espaço aberto para os protagonistas do drama jogarem as suas cartadas. O juiz disso tudo será porem o eleitorado caboverdiano que tem ai uma oportunidade para, em primeira mão, observar o posicionamento da sua actual classe politica em relação a globalidade dos problemas que se põem ao pais e, muito particularmente, o empenho de cada partido ou figura politica em contribuir para a estabilização e evolução do sistema politico democrático que tanto custou ser implantado no nosso pais.
Também será a oportunidade para uma observação mais focalizada sobre os homens e mulheres que compõem a classe politica, o seu carácter, e a maturidade demonstrada por cada um em conciliar os seus interesses pessoais ou de grupo com os interesses gerais e colectivos da Nação.
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