Debate sobre a situação da Justiça 2006
Debate sobre a situação da Justiça
Humberto Cardoso
Outubro de 2005
Sr. Presidente, senhores membros do Governo, colegas deputados
A Justiça em Cabo Verde está em vias de ganhar a massa crítica necessária, em termos de componentes e grau de institucionalização dos mesmos, para que em permanência dispense o que todos dela esperam: a protecção dos direitos dos cidadãos, o dirimir dos conflitos públicos e privados, a repressão da violação da legalidade democrática, o travão efectivo a tentações tirânicas de maiorias conjunturais.
Os novos códigos, o Código Penal e o Código do Processo Penal, e a aprovação pela Assembleia Nacional da Lei de instalação do Tribunal Constitucional, neste último ano, juntaram-se a outras acções de institucionalização da Justiça que, seguindo o plano implícito na Constituição de 92 e em leis estruturantes dela derivadas, vêm construindo um Estado de Direito democrático onde a independência dos juízes é garantida, a conformidade das acções do Estado com a Constituição é verificada e os direitos fundamentais dos cidadãos e das minorias recebem a devida protecção.
Perante o esforço já feito a expectativa dos cidadãos em ter rapidamente uma Justiça efectiva porque independente, determinada e célere é muito grande. É isso que, nossa opinião, as sondagens do Afrobarómetro revelam. A confiança dada à Justiça é fundamentalmente a manifestação da vontade de todos em ver funcionar em pleno o mecanismo essencial a uma existência baseada na liberdade e na possibilidade de todos çoncretizarem os seus sonhos e as suas ambições ao mesmo tempo que se realiza o interesse colectivo, se garante os direitos fundamentais designadamente os direitos de propriedade e os direitos contratuais e se assegura a ordem, a segurança e a tranquilidade social.
A confiança dos cidadãos não resulta necessariamente da percepção real que as pessoas e a sociedade têm da situação actual da Justiça. É mais uma vontade/ desejo/ exigência dos cidadãos que implica para os agentes e profissionais na Justiça uma extraordinária responsabilidade. A assunção plena dessa responsabilidade por parte dos magistrados judiciais, dos magistrados do ministério público, dos advogados, dos funcionários judiciais mas também dos polícias e das forças de segurança é que irá permitir que tudo o que já está reunido em termos de investimentos físico, humano e institucional resulte na administração efectiva da justiça em Cabo Verde.
Os agentes da Justiça em exercício actualmente em Cabo Verde devem ter a consciência do papel histórico que deles se espera na construção da democracia e do Estado de Direito, uma tarefa que nos ocupa a todos há menos de15 anos . A eles cabe, designadamente, criar uma cultura do exercício da magistratura na democracia , cabe afirmar os tribunais como orgãos de soberania e cabe desenvolver um profissionalismo caracterizado por celeridade, previsibilidade e isenção na resposta às demandas de justiça, um profissionalismo que tranquiliza a sociedade.
Os cidadãos não têm a possibilidade de influenciar a postura dos tribunais com a alteração periódica dos seus titulares através de eleições como acontece com os outros orgãos de soberania designadamente o presidente da República e a Assembleia Nacional. Este facto que revela a ausência de uma legitimidade democrática directa dos titulares dos órgãos soberania que são tribunais põe um especial fardo sobre os magistrados. A sua legitimidade em administrar a justiça em nome do povo advém da aderência total das suas decisões ao espírito e à letra da Constituição e da defesa atenta do se designa de due process of law.
Sr. Presidente, senhores membros do Governo colegas deputados
A construção do edifício institucional da Justiça seguindo o plano da Constituição de 92 e acompanhado da ética e do ethos que lhe está subjacente e que credibiliza a administração da Justiça depara-se com dificuldades multiplas que importa confrontar de forma decidida:
Primeiro temos que aceitar que o nosso ponto de partida para a construção do estado de Direito não é zero mas sim abaixo de zero. A LOPE, a Lei da Organização Política do Estado promulgada em 1975 e a Constituição de 1980 não são percursores ou pontos evolutivos de uma cultura ou filosofia judicial que desembocaria na Constituição de 1992. A experiência da justiça no regime anterior com a subordinação dos juízes aos objectivos do partido único, as suas nomeações dependentes do governo, a total falta de autonomia do ministério público e as severas restrições do direitos fundamentais dos cidadãos, designadamente direitos de defesa está nas antípodas do Estado de Direito democrático que estamos hoje a construir. Não se compreende pois as referências de SEXCIA o sr. Presidente da República na abertura do ano judicial em relação a esta matéria. Do Presidente da Republica se espera o realce da natureza distinta da filosofia judicial própria do estado de direito e um incentivo permanente para a emergência de atitude, postura e mentalidade consentâneas com os seus parâmetros e elementos fundamentais.
Segundo, a democracia e a sociedade livre e aberta põem especial desafio aos orgãos que administram a justiça e cuidam da preservação da ordem e da segurança das pessoas. Exigem uma adequação permanente a novos desafios e níveis crescentes de institucionalização para que em respeito permanente para com os direitos fundamentais dos cidadãos e em aderência aos princípios e valores da Constituição sejam efectivos. Ou seja, não é a Constituição que deve mudar para suprir as insuficiências da polícia, dos centros prisionais, do ministério público ou dos tribunais mas sim essas instituições é que devem se colocar à altura das exigências constitucionais no importante e delicado serviço que prestam à comunidade e à república.
Terceiro, a efectividade da administração da Justiça depende ainda de dois factores importantes: condições adequadas para o desenvolvimento da carreira, remuneração justa e garantia especial de segurança. A indexação dos vencimentos dos magistrados judiciais enquanto titulares de orgãos de soberania aos vencimentos percebidos pelo Presidente da república e o primeiro ministro cria situações complicadas designadamente de deterioração do nível de vida dos juízes com consequências em termos de motivação na carreira e diminuição de independência. Isso acontece porque nós nos ramos legislativos e executivos do sistema não chegamos a acordo por razões populistas e demagógicas quanto o estado deve pagar aos titulares de orgãos de poder político. Em relação à segurança, os disparos contra o procurador Arlindo Figueiredo puseram com especial acuidade a obrigação do estado em dar a todo o tempo segurança especial aos agentes de justiça e agir rapidamente e decidamente contra os que se ousarem intimidar a justiça em cabo verde.
Sr. Presidente, senhores membros do Governo, colegas deputados
Estamos hoje ainda nos primórdios de uma longa caminhada para a criação de condições para a realização de um desejo permanente dos homens: o desejo de justiça. Iniciamos essa caminhada com os handicaps próprios de um país ainda num nível baixo de desenvolvimento e com uma experiência negativa e desviante do que constitui de facto a Justiça. Vivemos por outro lado num mundo cada vez mais globalizado em que desafios aos fundamentos da sociedade aberta e liberal mostram-se cada vez mais perigosos e sofisticados. Ameaças de terrorismo interconectam-se com tráficos de drogas, tráficos de armas, tráfico de pessoas e branqueamento de capitais no que às vezes configura uma grande conspiração criminosa com raízes locais e globais. Neste contexto, o que esperamos dos agentes de Justiça não é facil mas, em jeito de compensação, tem todos a vantagem e o privilégio de um dia poderem dizer “estivemos presentes e participamos no momento de criação do Estado de direito democrático em Cabo Verde”.
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