Friday, September 5, 2025

A problemática da cessação de mandato

 

A problemática da cessação de mandato                  

                  

                                                                                              Humberto Cardoso

                                                                                        2/5/94               

          Eventos políticos no seio do MpD, o partido com maioria no parlamento, desembocaram no afastamento de importantes dirigentes que, coincidente mente, ocupam lugares de deputado da Nação. Em face disso, os efeitos do que, em outra situação seria matéria privada do MpD, não deixam de se fazer sentir sobre o parlamento e ai atingir toda a colectividade nacional.

 

         Porque põe-se o problema: o que vai acontecer a seguir? Vão os dirigentes afastados posicionar-se como um novo grupo parlamentar, mesmo que informalmente, ou vão se manter individualmente como independentes? O MpD, perante a sangria, vai procurar reaver os mandatos que, em seu nome, esses deputados detêm? E, na impossibilidade de os reaver, será que ainda terá maioria para sustentar o Governo? 

 

         Paralelamente, questões fundamentais que vão ao centro do próprio conceito da democracia representativa terão que ser reavaliadas a luz dos acontecimentos presentes e dos que se anunciam para o próximo futuro: Qual e o papel dos partidos políticos? De quem e afinal o mandato? Dos deputados ou do partido? Qual e a relevância de tudo isso para o sistema democrático e para a sua estabilidade?

 

         Todas as democracias, particularmente as de forte pendor parlamentar como a nossa, num momento ou outro da sua evolução, foram obrigadas a confrontarem-se com esses problemas. A forma como os resolveram foi determinante para sua consolidação e para a interiorização, por uns e por outros, do seu papel e responsabilidade no sucesso do sistema politico, consensualmente aceite. 

 

         Um exemplo relativamente recente e próximo e o caso português.    

 

         Durante os debates na especialidade na Assembleia Constituinte que em 1976 aprovou a actual Constituição Portuguesa, o artigo 49 que regula a perda e renuncia ao mandato dos deputados, pelas suas implicações, foi dos artigos que mais polémica causou. O texto do Ante-Projecto da Constituição apresentava o referido artigo da seguinte forma:

        

         Art 49 (Perda e renúncia de mandato) - 1- Perdem o mandato o os deputados que: a)... ; b)... ; c) Se inscrevem em partido diverso daquele pelo qual foram apresentados a sufrágio:

         d) Deixem de pertencer ao partido politico pelo qual foram apresentados a sufrágio, desde que o partido requeira a sua substituo;

 

         Se a alínea c) mereceu unanimidade dos presentes, já a alínea d) foi objecto de grande controvérsia. Constitucionalistas portugueses de renome, como Vital Moreira e Jorge Miranda, então deputados respectivamente pelo PCP e PPD na Assembleia Constituinte, defrontaram-se abertamente na apreciação desse artigo. Excertos das suas intervenções:

        

         Deputado Vital Moreira: "...esta alínea.. corre o risco de contribuir para aquilo a que poderemos chamar uma hiperpartidarizacao da vida politica, em termos de não só reservar exclusivamente aos partidos a apresentação de candidaturas, mas inclusivamente, tal como aqui se mostra, ou tal como aqui se propunha, de fazer perder o mandato aqueles deputados que, por razoes que podem ser razoes politicamente de grande relevância, venham a ter de perder o mandato".

         "..Não se compreende que perca o seu mandato um deputado que deixe de pertencer ao partido por que foi eleito, especialmente se se não tiver em consideração as circunstancias em possa ter deixado de pertencer ao partido. E que podem ser múltiplas as situações em que os deputados deixem de pertencer aos partidos por cuja lista são eleitos: podem abandonar, podem ser expulsos, e podem ser expulsos por vários motivos. De resto, os eleitores não elegem apenas partidos, elegem pessoas e escolhem, acima de tudo, programas políticos, ou, pelo menos, votam na base de uma certa imagem politica".

 

         Deputado Jorge Miranda: "... nos temos de raciocinar a face da situação concreta em Portugal. E temos de nos recordar da experiência do fim da monarquia constitucional e da I Republica democrática neste pais. E essa experiência mostra que uma das causas principais da queda da monarquia constitucional, primeiro, e, depois, da degradação do sistema parlamentar durante a I republica democrática, foi precisamente a pulverização partidária, a instabilidade partidária, a possibilidade dos deputados eleitos por certos partidos poderem mudar desses partidos para outros partidos. (...) Admitir que, devidos aos humores ou devido a problemas de consciência de certos deputados, a maioria parlamentar, a maioria governamental, venha a ser abalada, e contribuir gravemente para a não conservação da democracia politica..."

         "Também foi dito que esta regra [alínea d)] poderia por em causa a personalidade dos candidatos, dos deputados eleitos, que seria uma arma de chantagem politica contra os deputados. Não me parece, porque pelo menos um deputado que deixa de concordar com a pratica ou com o programa do seu partido teria sempre o direito de renunciar ao mandato, de explicar aos seus eleitores que já não podia pertencer a esse partido e de pedir o juízo da opinião publica. O que não me parece certo e dizer que a minoria que sai de um partido por dizer que o programa desse partido deixa de ser cumprido, que tem razão contra a maioria que fica no partido e que continua a sustentar que a pratica do partido e fiel ao programa".

 

         A problemática que na época dividiu os deputados da Assembleia Constituinte portuguesa e encarada hoje pela nossa jovem democracia de forma muita concreta.

 

         A nossa Constituição a semelhança da Constituição portuguesa aprovada em 1976 não contem a disposição que tornaria automática a resolução do problema posto por deputados que deixassem ou fossem expulsos do partido. Isso considerado, a situação vivida actualmente em Cabo Verde abre um espaço fértil para um debate, que a ser conduzido com urbanidade e preocupação pelo aprofundamento da experimentação democrática em progresso no pais, poderá revelar-se enriquecedor e confortante para todos, na medida em que reforçará o sentimento que estamos no mesmo barco e que a responsabilidade de o manter a flutuar e a avançar e de todos.

 

         A menos de duas semanas da sessão da Assembleia Nacional os principais actores do drama que se desenrolara no Plenário da AN são, sem duvida, os dissidentes do MpD e o Grupo Parlamentar deste partido politico.

 

         - O grupo de dissidentes do MpD afirma o seu direito a manutenção do mandato, mas ao mesmo tempo, a maioria deles, senão todos, esta engajada num conjunto de actividades politicas que deixam entender ao publico que um novo partido politico encontra-se em fase avançada de gestação.

 

         Numa reunião realizada em S.Jorge, no dia 17 de Abril o grupo investiu mesmo uma comissão instaladora, presidida pelo Dr. Eurico Monteiro, para esse fim. Alias, desde de 19 de Janeiro, data em que esses ex-dirigentes do MpD se pronunciaram publicamente fora do processo eleitoral que conduziria a convenção extraordinária do MpD, tem-se multiplicado em declarações publicas que apontam para a criação de uma terceira forca capaz de, nas eleições gerais, disputar o poder ao MpD.

   

         A duvida que fica e: em face dos seus objectivos políticos, quais as intenções em estar presente na sessão da AN que se aproxima. A oportunidade para desencadear um debate sobre a titularidade do mandato ou a tentativa de retirar dividendos políticos que poderão ser capitalizados a curto ou médio prazo pelo partido emergente?

 

         Não nos parece que o objectivo seja simplesmente académico ate porque o parlamento, pela sua própria natureza e função, não e o lugar ideal para esse tipo de confrontos. Resta pois considerar objectivos de carácter politico. Mas aqui questões de extrema importância se colocam que não só dizem respeito ao papel do órgão de sobejaria - o parlamento - como também a estabilidade do sistema e, ainda, a postura dos políticos e partidos no seu relacionamento com o sistema politico. Senão vejamos:

 

         1- A figura do deputado independente fora do grupo parlamentar dos partidos representados no parlamento e perfeitamente permissível. Decorre da flexibilidade que e permitida pelo preceito constitucional que diz: "artigo 182 1-Perdem o mandato os deputados que: d) se inscrevem em partido diverso daquele por que foram eleitos". Ou seja, um deputado que por razoes diversas deixa o partido por que foi eleito mas não se sente compelido a juntar-se a outro tem o direito de se manter no parlamento.

 

         E o caso, entre nos, p. ex., do deputado David Hoffer Almada, que deixou a bancada do PAICV e o caso do deputado  Amândio Carvalho que escolheu deixar o grupo parlamentar do MpD mas reiterando o seu apoio ao programa desse partido e aos objectivos por ele preconizados.

 

         Com essa flexibilidade evita-se o que o doutor Vital Moreira no texto acima chama de "hiperpartidirizacao" da vida politica, neste caso, do parlamento.

 

         2- Ultrapassam, porem, os limites de flexibilidade possível os deputados que se afastam da sua bancada e posicionam-se, mesmo que informalmente, como um novo agrupamento parlamentar. A este propósito, os professores Vital Moreira e Canotilho Gomes expõem o seguinte na obra Constituição Portuguesa anotada, pg 249, 2 volume:

         "A figura dos chamados agrupamentos de deputados independentes (...) não possui fundamento constitucional expresso, sendo de questionar se e conforme aos princípios constitucionais permitir que deputados eleitos pelas listas de um partido (ou coligação de partidos), que não se integrem ou deixem de integrar o respectivo GP, constituam organizações parlamentares formais, fora e a margem dele. Seguramente contraditória com a filosofia constitucional e a figura regimental de agrupamentos parlamentares (..) que permite conferir expressão parlamentar própria a partidos políticos que se não apresentaram directamente ao sufrágio e cujos deputados foram eleitos como independentes em listas de outros partidos".

 

         3- Também, com ainda maior razão, não se pode aceitar o aparecimento de um novo partido no parlamento, a meio da legislatura. Sustentando este ponto de vista, os mesmos autores na obra citada, pg 160, dizem o seguinte:

         "(..)A isso se opõem manifestamente a razão de ser da reserva constitucional da candidatura para os partidos políticos, bem como o principio democrático, que exigem que só pode alcançar representação parlamentar os partidos que se apresentem como tal ao eleitorado e que, sozinhos ou em coligação, obtenham apoio eleitoral suficiente para fazerem eleger deputados".

        

         A hipótese de aparecimento de um novo partido no parlamento e de se colocar, na medida em que a posição dos ex-dirigentes do MpD tem sido, no mínimo, dúbia: estão, confessadamente, em processo de formação de um partido politico, ao qual, parece, não procuram levar ao seu termino, o reconhecimento da sua personalidade politica, para evitar a perda de assento parlamentar aos seus principais dirigentes.

 

         Essa atitude explica-se considerando que, como diz o doutor Marcelo Ribeiro de Sousa no seu livro "Os partidos políticos no Direito Constitucional português, (pg 426), o partido politico não existe antes de tal inscrição e não e admitida perante a ordem jurídica portuguesa a figura do partido politico não personalizado ou sem personalidade, já que o estatuto jurídico constitucional e legal do partido politico - nomeadamente os seus fins e funções - supõem necessariamente a sua personalização". Porem, segundo o mesmo autor na pg 543 da obra citada, "a Constituição e também a lei impõem a existência de partidos políticos, como que forçando a sua institucionalização. Mas deixam a iniciativa dos particulares o desencadeamento do processo da constituição especifica desses partidos.

 

         Estamos pois perante a situação de termos cidadãos fazendo uso das liberdades garantidas na Constituição para se associarem em partido politico mas que se refreiam de dar o passo fundamental, a inscrição no Supremo Tribunal. Porque, para a realização dos seus fins e funções enquanto partido politico, pelo menos neste momento, ou para esta sessão da AN, não precisam de personalidade jurídica, pois estão em condições de infiltrar um órgão de soberania pela via dos mandatos que detêm, conseguidos em nome de outro partido.  

 

         Não se pode, no entanto, contornar o facto de que, embora pretendam ficar a um passo de aquisição de personalidade jurídica, esses cidadãos já estabeleceram entre si laços baseados na comunhão de certos ideais políticos, já traçaram objectivos específicos e já delinearam estratégias para consecução dos mesmos. Mais, as declarações publicas e escritos nos jornais, nas quais se tem mostrado profícuos nos últimos meses, deixam bem claros as suas posições e intenções politicas, a curto e médio prazo. Não poderão, portanto, aparecer no Parlamento como "deputados independentes", isolados e não comprometidos, a exemplo de Amândio Carvalho e David Hoffer Almada e, muito menos, como integrantes do Grupo Parlamentar do partido pela lista do qual foram eleitos, mas com cujo Programa estão, aberta e expressamente, em oposição.

 

         4 - Se se der credito completo as declarações do Dr. Eurico Monteiro no programa "Frente a Frente" da TNCV, após o abandono do processo eleitoral interno do MpD, fica-se com a ideia de que o recurso a todos estes subterfúgios para participar na sessão de Maio da AN de Maio enquadra-se na confessada estratégia de desestabilização do Governo. Se, por outro lado, se considerar o risco de penalização politica que poderão incorrer perante a opinião publica e, em tempo próprio, perante o eleitorado nacional por praticas pouco convencionais e que distorcem os procedimentos exigidos aos políticos e as forcas politicas em democracia, e de se perguntar quais as motivações e objectivos deste passo tão perigoso para o seu futuro politico.

 

         Será simplesmente ressentimento pela sua exclusão do partido? Ou então, e o desejo de Poder, aqui e agora, que não deixa esperar pelas eleições de 1996 e, portanto, obriga que se procure derrubar o Governo para que as eleições sejam antecipadas ainda para este ano?

 

         5 - Um dos princípios fundamentais da democracia e o principio da alternância politica. Quer dizer que a democracia pressupõe a realização de eleições periódicas para que através delas "(..) legitima-se democraticamente a conversão da vontade politica em posição de poder e domínio, estabelece-se a organização legitimante de distribuição dos poderes; procede-se a criação do pessoal politico e marca-se o ritmo da vida politica de um pais" (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, pg. 436).

 

         Ninguém parece ter duvidas, nem mesmo o PAICV (a acreditar no seu "slogan" do tempo de antena na RNCV), que em 1996 teremos eleições. Portanto, e só uma questão de esperar e de se preparar para o confronto eleitoral. Opções por derrube ou desestabilização do Governo a meio da legislatura revelam uma deficiente interiorização dos princípios e procedimentos democráticos e prestam um mau serviço a um pais que, pela via de aprendizagem contínua, vai singrando na sua experiência pelos caminhos da democracia, apesar do enorme lastro deixado pelo seu passado colonial e por quinze anos de totalitarismo.

 

 

         - O Movimento para Democracia (MpD), presumivelmente ainda senhor de uma maioria confortável, mas que, naturalmente, espera reaver os mandatos daqueles que deixaram as suas fileiras, assumindo posições incompatíveis com os princípios da sua filosofia politica e as linhas mestras do seu programa politico e manifestando ate a sua disponibilidade para alianças com a oposição parlamentar.

 

         Reaver os mandatos esbarra, porem, com o preceito constitucional que restringe a perda de mandato só aos casos de inscrição num outro partido. Não obstante, a questão esta longe de ser pacifica e toca mesmo a problemática da natureza do mandato.

 

         O professor Gomes Canotilho enuncia esse problema no seu livro "Direito Constitucional", pg 437, quando diz: " Um problema suscitado pelo principio da imediaticidade [do voto] e o da permanência, como deputado, do candidato eleito que abandona a lista (ou partido) que foi objecto de votação imediata pelos eleitores. Se a votação por lista escolhida pelos partidos tem sido considerada como compatível com o principio da imediação, já o abandono do partido na lista do qual foi eleito pode levantar problemas quando se encarar com todo o rigor o principio de imediaticidade do sufrágio. Os mesmos problemas se põem quando existam fraccionamentos de partido ou novas formações partidárias. A favor da manutenção do mandato invoca-se o principio da representação: o deputado representa o povo e não os partidos e pode inclusivamente ser um candidato independente. A favor da perda do mandato esgrime-se com o facto de o deputado que abandona o partido renunciar, de facto, ao seu mandato como deputado".  

 

         Nas paginas 743 e 744 da obra citada , o professor Gomes Canotilho aprofunda a questão:

         " A compreensão juridico-constitucional da representação parlamentar não se reconduz ao modelo representativo liberal. Há que ter em conta que a relação deputado-eleitores e hoje substituída por uma referencia triangular, onde avultam a relação entre os eleitores e os partidos e a relação entre os partidos e os deputados, alem, e evidente, da referida relação eleitores-representantes. Dai que se afirme a prevalência do mandato do partido sobre o do eleitorado (DUVERGER) e se considere a dependência de deputado em relação ao partido como o sucedâneo funcional do mandato imperativo (BOBBIO).

         Esta relevância constitucional da relação deputados-partidos esta expressa, por ex., no facto de as eleições parlamentares implicarem necessariamente a mediação partidária (..), na existência de grupos parlamentares com base partidária (..), no regime de constituição das comissões parlamentares (..) e na forma como o Estatuto de Deputados (..) regula as vagas e substituições de deputados".

        

         A estreita ligação entre o deputado e o partido que o fez eleger encontra, entretanto, os seus limites na proibição do "mandato imperativo". Isso e expresso pelos professores Vital Moreira e Gomes Canotilho no livro "Constituição Portuguesa anotada", pg 177: "Note-se designadamente, que os deputados não podem ser destituídos pelos eleitores, nem demitidos pelos respectivos partidos, nem expulsos pela própria Assembleia da Republica". 

 

         O impasse que isso pode provocar e, normalmente, resolvido pelos partidos noutras paragens através nomeadamente: "a) demissão em branco, assinada antes de assunção do mandato; b) contrato inominado e disposição antecipada do mandato, em que o deputado se obriga a pedir demissão quando o partido o solicita; c) demissão em caso de abandono do partido, como norma consuetudinária ou de cortesia".

 

         No nosso caso em que o MpD não se acautelou antecipadamente, fica o espaço aberto para os protagonistas do drama jogarem as suas cartadas. O juiz disso tudo será porem o eleitorado caboverdiano que tem ai uma oportunidade para, em primeira mão, observar o posicionamento da sua actual classe politica em relação a globalidade dos problemas que se põem ao pais e, muito  particularmente, o empenho de cada partido ou figura politica em contribuir para a estabilização e evolução do sistema politico democrático que tanto custou ser implantado no nosso pais.

 

         Também será a oportunidade para uma observação mais focalizada sobre os homens e mulheres que compõem a classe politica, o seu carácter, e a maturidade demonstrada por cada um em conciliar os seus interesses pessoais ou de grupo com os interesses gerais e colectivos da Nação. 

A sociedade e o Poder em Cabo Verde (IV)

A sociedade e o Poder em Cabo Verde (IV)

 

                                                                                              Humberto Cardoso

 

            Historicamente, consta-se que a acontecimentos sociais e políticos de grande envergadura, portadoras de profundas mudanças nas relações de poder numa comunidade, segue-se um lento mas progressivo desvanecer da euforia que, pouco antes, parecia animar e sustentar toda a gente na realização de tarefas impensáveis em tempos normais. O regresso à normalidade da vida, com todas as suas complexidades e interesses múltiplos, muitas vezes, conflituantes, tem um efeito anti-clímax que provoca em muitos o desencanto, a descrença e, mesmo, o resentimento em relação aqueles que, de forma mais pronunciada, personalizaram a mudança.  A sociedade vê-se, novamente obrigada a enfrentar os seus problemas de sempre, a confrontar as suas fraquezas intrínsecas e a projectar-se nas suas esperanças, que, embora avivadas nos acontecimentos recentes, nem por isso se mostram de concretização imediata.

 

            A manutenção de uma atenção e uma energia sociais direccionadas para o aprofundamento das transformações do ambiente socio-político, iniciadas a nivelmacro mas que para se sustentarem precisam existir a nível micro, depende, nomeadamente:

            - da natureza, qualidade e complexidade das relações sociais e, ainda, do seu grau de autonomia;

            - das características das organizações que constituem a interface da sociedade com o sistema político.

 

            A instauração da democracia  põe a nu, com especial clareza, as deficências da sociedade, na medida em que sendo o sistema político mais exigente e abrangente em termos de participação popular, fundamenta-se precisamente na negação de qualquer forma de exclusão e, por conseguinte, no direito à diferença e no princípio de igual oportunidade. Uma sociedade como a caboverdiana, constrangida a modelar-se no após independência, com base na diferenciação a vários níveis de quem é nós e quem é eles (combatentes e militantes; direcção superior e Partido; militantes e não militantes; exploradores do povo e povo; patriotas e não patriotas; emigrantes e nacionais; etc.)  grandes dificuldades manifesta em reajustar-se a uma vivência em que todos são iguais perante a lei e em que o poder político é legitimado na base de um cidadão, um voto.

 

            A exclusão, para ser real, precisa organizar-se, isto é, definir os termos de pertença e não pertença, esforçar-se por manter os privilégios dos incluídos, competir com outros grupos para ser mais dentro e, naturamente, procurar reproduzir-se.  Não valendo os direitos de nascimento porque só o Partido, enquanto instrumento da história, é eterno, procura perpetuar-se pelo processo de cooptação dos mais leais e dos que dão maiores garantias.  Assim, alarga-se o conceito de combatentes da liberdade da pátria para que o exclusivismo do grupo não se perca e não se petrifique. Criam-se organizações-“viveiros” para se ter material novo para cooptação futura e procura-se enquadrar todo o mundo, para que cada um saiba o seu lugar. Um sistema de penalidades e recompensas mantem tudo no seu lugar e uma hipocrisia oficial  - todos são, afinal, camaradas - tranquiliza consciências e relembra que, colectivamente, estão simplesmente a empurrar a grande roda da História.

 

            A democracia corroi, lenta mas inexoravelmente, tal sistema. Para se instalar reclama o voto igual, livre e secreto; para funcionar exige, designadamente, liberdade de expressão e de informação; para se manter, obriga-se ao seguimento estrito de leis escritas e publicadas; para ser efectivo, precisa de órgãos de direcção, contituídos por cidadãos com mandatos, ou seja, eleitos pelo voto popular. Os pressupostos do outro sistema - o exclusivismo da legitimidade histórica, o clientelismo, a cooptação - não conseguem resistir, por muito tempo, aos efeitos erosivos da prática democrática.

 

            Mas isso não se realiza sem uma grande luta. A antiga elite dirigente e a sua clientela procuram metamorfosear-se em formas pacíficas de actuação com o mesmo direito dos outros; apresentam-se como vítimas quando apontados, e esforçam-se, subrepticiamente, por impedir o desenvolvimento de relações sociais e económicas que aprofundem os efeitos de desgaste da vivência democrática sobre a sua rede de influências e sobre os seus clientes. Tornam-se, nessa lógica, os maiores denunciantes de corrupção, os mais exigentes no acautelar das acções dos responsáveis pelo Estado democrático e os mais ferverosos na defesa das normas por eles introduzidas quando no poder, cientes das motivações hipócritas e intrumentais que as animavam então. Chegam ao ponto de se afirmarem como os mais democratas em tentativas de extrapolação, até quase ao absurdo, de elementos parciais da filosofia liberal. O objectivo é abrir completamente o sistema político democrático a arremetidas sucessivas de forças sociais, através do exercício dos direitos civis e políticos sem a mediação das instituições, ainda por consolidar, e sem o sancionamento e a moderação, que a noção de interesse público e o sentido do bem geral, naturalmente, criam.

 

            Anne Applebaum, num recente artigo na revista Foreign Affairs (Nov/Dez 1994), faz um conjunto de observações sobre as relações de poder nas sociedades em transição na Europa de Leste que, em alguns casos, têm facilitado o regresso dos ex-comunistas ao poder:

            Não é o espectro de 1930 [o nacionalismo exacerbado]  que assombra a Europa Central, mas sim o velho modelo italiano - regimes corruptos dirigidos pelos antigos partidos comunistas que se apoiam numa classe empresarial semi-mafiosa formada, em grande parte, por ex-comunistas. O regresso dos comunistas ao poder reflecte a emergência de uma nova elite económica. As ligações entre os capitalistas, outrora parte da nomenklatura, e os políticos comunistas mantêm-se intactos, criando uma classe dirigente que conserva poder em várias esferas, não deixando muito espaço para uma real competição nos debates políticos e económicos. [Isso porque] (..) com melhores contactos, mais dinheiro e mais propriedade para se iniciarem,  os ex-comunistas têm sido os maiores beneficiários dos últimos quatro anos de reformas económicas. Não é, portanto, surpresa que os partidos dos ex-comunistas sejam melhor financiados e organizados que os partidos criados pelos dissidentes do regime comunista.

 

            Em Cabo Verde, o protagonismo da antiga elite e da sua clientela na perservação o máximo possível, das condições de outrora - ao mesmo tempo que, com os meios que detêm (contactos, capitais, etc)  fazem uso rápido das novas oportunidades para, no futuro próximo, poderem dar cartas, no quadro das novas relações económicas - tem como efeito imediato uma certa travagem do processo de autonomização da sociedade, tornada possível pela democracia. Nisso, essa elite é objectivamente ajudada pela inércia dos interesses imediatos de vários estratos sociais e pelo receio do desconhecido que, na  nossa sociedade, ficou mais vincado por anos de existência no limiar da sobrevivência, da qual se escapou para cair na dependência completa do Estado. Assim,

·   funcionários do Estado são sensíveis a políticas que visam reduzir os efectivos da Administração Pública e adequa-la a funções não mais estritamemte controladoras mas sim facilitadoras, exercidas de forma descentralizada e desconcentrada, num quadro de uma economia de mercado. A necessidade de controlo do crescimento do Orçamento do Estado e do seu défice colide, de imediato, com a segurança que o trabalho na função pública habituou o funcionário, apesar de, a médio e longo prazo, esse controlo se mostrar como um dos principais factores de prosperidade do país, pela estabilidade em termos macroeconómicos, que ajuda a manter;

·      quadros na função pública e no sector público sentem-se inconfortáveis com a perspectiva do Estado evoluir para uma nova relação com a economia nacional e com a sociedade. Não há percepção clara das novas possibilidades de avanço, em termos profissionais e pessoais, que se abrem, à medida que o Estado abandona o controlo administrativo tradicional em favor de uma gestão macroeconómica, suportada por políticas, designadamente, monetária, financeira e fiscal, e que estimula a sociedade no sentido de ganhar mais autonomia e de participar na construção de um aparelho produtivo nacional. Ouve-se, pelo contrário, as acusações absurdas de ultra-liberalismo e os apelos dos novos militantes da justiça social, em reacção à perda antevista dos privilégios e do poder tradicionais, ao mesmo tempo que se constata o reforço do espírito anti-empresarial  em certos sectores de opinião;

·   trabalhadores no sector empresarial do Estado receiam políticas de reestruturação das suas empresas, porque implicam saneamento financeiro e privatizações que, em muitos casos, obrigam a despedimentos. Não é fácil para eles compreender que o seu emprego é custeado, em grande parte, não pela empresa mas, sim, pelo Estado, e que tal situação não pode permanecer indefinidamente, sem esperança para a empresa e sem a possibilidade de uma dinâmica empresarial geradora de novos postos de trabalho para os desempregados e para os que procuram o primeiro emprego.

·   comerciantes têm dúvidas em relação à liberalização do comércio, porque habituaram-se a ganhos certos, através do sistema de plafond, que dava a alguns o monopólio de facto das importações, mantinha a competição sempre um passo atrás, permitia conluios na colocação de preços e evitava o investimento no conhecimento de mercados estrangeiros.

·   industriais recomendam cautela na liberalização do comércio externo, porque , habituados às políticas proteccionistas do modelo económico de substituição de importações, não se procuparam devidamente com a productividade, nem com a aquisição de tecnologia adequada e nem, ainda, com o conhecimento dos mercados de exportação. Com a protecção do Estado, espalhavam os seus custos pelos consumidores e poderiam colher lucros fabulosos sem muito investimento em tecnologia e em recursos humanos.

·   trabalhadores das FAIMO desconfiam de políticas de reconversão de mão de obra, porque retiram a certeza dos trabalhos públicos e libertam o indivíduo para incertezas do mercado de trabalho mesmo que, a prazo, o novo ambiente económico aumente as possibilidades de conseguir um trabalho mais compensador, a todos os níveis.

 

            Os receios, as dúvidas e as desconfianças dos vários actores económicos e sociais reforçam a inércia social, inibindo, assim, o desenvolvimento de formas organizadas de interacção com o Estado, capazes de exprimir os seus interesses, de ajudar a modelar as políticas económicas e de contribuir para o desmantelamento da economia estatizada, que conduzia o país a um beco sem saída. Outrossim, essas manifestações servem bem para que a anterior elite e a sua clientela mantenham a sua posição privilegiada nos mais diferentes domínios e instituições, não deixando, porém, de aproveitar - e bem - as possibilidades abertas, enquanto a sociedade se encontra paralisada pela dúvida.

 

            A democracia sofre, porque a única acção que os mesmos actores, assaltados por receios, conseguem desenvolver resulta, na prática, no exacerbar das demandas de um bolo, cada vez menor e em risco de, a prazo, se reduzir ainda mais, com a actual atitude dos países doadores em relação à ajuda externa. Sofre, ainda, porque a democracia funciona melhor com um elevado grau de autonomia da sociedade em relação ao Estado e num ambiente sócio-político sem as tensões permanentes, que a politização de todas as questões, económicas, salariais, etc., derivada da dependência de uns e outros do Estado, naturalmente acarreta.   

 

            O desenvolvimento do país é comprometido, por outro lado, na medida em que

os potencias beneficiários de uma economia aberta, dinâmica e autosustentada, não se engajam, de forma clara e directa, nas transformações necessárias nem demonstram o seu apoio, explicíto, crítico e construtivo, às medidas tomadas na sua implantação. Com a mudez e a inércia, em termos associativos, reforçam as resistências institucionais à mudança e ficam incapacitados de expressar a sua desaprovação em relação à implementação deficiente das medidas já publicitadas. O Governo, sem o feedback da sociedade e da pluralidade dos interesses, que a constituem, maiores probabalidades tem de falhar, por acções e omissões, e de acabar prisioneiro da cultura organizacional das instituições que superintende.

 

             A incapacidade da sociedade em se exprimir, convenientemente, nos seus múltiplos interesses rarefaz os pontos de contacto com o sistema político e concede aos partidos políticos o monopólio de influenciação, a todos os níveis, da vida do país. Como todos os monopólios, a exclusividade de diálogo dos partidos com o sistema político, que isso provoca,  dá lugar a  perversões que, ao serem aprofundadas, vão reflectir-se no desempenho dos partidos na sociedade e na democracia.  

 

            O reducionismo do papel dos partidos é uma das consequências mais óbvias dessa situação: O partido deixa de se preocupar com a tarefa de concorrer para a formação da vontade política do povo e para a organização do poder polítco, para se fixar exclusivamente sobre a quetão do poder. Em vez de apresentar alternativas políticas, de veicular as suas opiniões e posições sobre as políticas e acções do Governo, de informar a sociedade e organizar a sua participação política e, ainda, de participar nos órgãos de poder político de forma a consolidá-los e a direccioná-los para a defesa do interesse público, o objectivo resume-se a apossar-se do poder, no mais curto espaço de tempo. Para isso, desgaste-se o Governo, põe-se em causa as instituições, instrumentaliza-se a sociedade para a lançar directamente contra o sistema, e manipula-se a informação em críticas não equilibradas por propostas alternativas, que permitam aos cidadãos ver o fundo das questões e ajuizar, livremente, sobre elas.

 

            A questão do poder foi central para os partidos políticos nestes primeiros anos da democracia caboverdiana, desviando-os das suas múltiplas funções e, a prazo, comprometendo, mesmo, a sua perenidade e aceitabilidade social e política. Se não, vejamos:

            - O MpD emergiu triunfantemente na cena política, porque soube canalizar e focalizar a energia do  movimento popular constituído em 1990, no processo de luta pelos direitos civis e políticos e pela democaria. Se, de um lado, a origem do MpD garantiu-lhe a vitória e um contínuo apoio popular ao longo do seu mandato, por outro lado, deixou-lhe mal equipado para as exigências próprias do uso do poder. Realmente, as suas raizes profundas na sociedade caboverdiana tornaram-se num handicap quando, entre outros factores, as ambivalências da relação da sociedade com o poder, derivadas de séculos de convivência com poderes estranhos (um mais ou menos remoto e o outro opressivamente muito presente) condicionaram a sua postura e actuação ao longo de todo o processo de desalojamento do partido único de cada uma das instituições do país.

            A aprendizagem do MpD no exercício do poder tem sido, em certa medida, a aprendizagem global de uma sociedade que, pela primeira vez, se vê na posição de determinar o conteúdo e a forma do poder, ao mesmo tempo que, lenta mas seguramente, ultrapassa os traumas e as desconfianças, deixados pelas relações de outrora. Daí os complexos, as dúvidas e as ansiedades, muitas vezes, manifestadas pelo poder na actual vigência do regime democrático. Isso contrasta, fortemente com a postura desembaraçada e focalizada do ex-partido único, reveladora de uma especial cultura de poder, que é assumida na resistência à perda de influência nas instituições do Estado.

            As tensões aí geradas submetem o MpD a impulsos contraditórios, designadamente: um que aposta na emulação dos métodos, já conhecidos, do exercício do poder, ou seja de métodos similares aos do partido único; outro que se presta a continuar o processo de aprendizagem, suportando as dúvidas, as ansiedades e os desencantos; e ainda um outro que pessoaliza o poder, procurando ficar em bem com todos, mas sacrificando a coerência do exercício do poder. Como é de esperar, esses inpulsos não se materializam em correntes no seio dessa organização nem são assumidos separadamente por indivíduos. Convivem global e contraditòriamente na organização, reflectindo-se nas acções, omissões e ambiguidades do exercício do poder.

            A crise no MpD em 1993/94 está intimamente ligada a desiquilíbrios nessa convivência, provocada pelas tensões enormes que a organização teve que suportar até a aprovação da nova Constituição. Manifestações de uma certa proximidade de um um dos impulsos - a emulação de métodos similares aos do partido único - como reacção às pressões da oposição, aliadas a tentativas de controlo da liderança do partido, desencadearam uma reacção em cadeia que concluiu o seu curso na Convenção Extraordinária de Fevereiro de 1994. Aí, a organização, face a grave anomalia no seu seio, reagiu violentamente, acabando por restaurar o equilíbrio interno através da reafirmação dos princípios e valores iniciais e da confirmação da sua liderança.

            O processo de aprendizagem continua, não obstante o seu trilhar tortuoso e doloroso. A resposta, tanto da organização como da base social de apoio, à crise referida atrás, permite prognosticar sucesso nesse empreendimento. Outrossim, as oportunidades criadas pela oposição nos seus sucessivos desafios ao poder têm sido aproveitadas na exercitação dos processos e procedimentos previstos pela Constituição para a confirmação e o exercício do poder, afastando, em consequência, para, cada vez mais longe, as tentações do uso de métodos autoritários .

             Entretanto, as deficiências sociais a nível do estabelecimento de ligações horizontais entre os indivíduos, visíveis,  nomeadamente, na fraca capacidade associativa e na percepção, ainda não muito clara, do que é o bem comum, fazem-se sentir dentro da organização. O pessoalismo, o subjectivismo e a falta de espírito de equipa são sinais disso. Por outro lado, o debate vivo, a presença do contraditório e a larga autonomia das estruturas também demonstram que nada disso é pacífico e que a procura do caminho certo persiste. O grau do apoio social, granjeado a cada momento, indicará se a evolução da organização é positiva ou negativa.

 

            - O PAICV sofre as consequências devastadoras do reducionismo da sua postura como partido político. Centrou-se na defesa das opções caducas do partido único e da sua herança ideológica, resistiu, esforçada e publicamente, à perda de influência nas instituições, e persistiu na utilização de certas tácticas de luta política que o distinguem como uma organização à parte na sociedade caboverdiana. A nova liderança, desejosa de se mostrar digna das tradições do partido, ansiosa pelo acesso à governação e, também, muito consciente da presença, mais ou menos na sombra, dos antigos dirigentes, optou por uma estratégia de derrube do Governo, que veio a revelar-se infrutífera, sacrificando no processo a sua chance de se afirmar como uma alternativa credível.

            A estratégia de poder do PAICV é uma estratégia de curto prazo. Por isso, por um lado, não se retrai de atacar, com todas as armas possíveis, o Governo, mesmo sabendo do prejuízo que causa ao país e das dificuldades que cria a qualquer outra força política que, futuramente, venha a assumir o poder; por outro, esforça-se por impedir o aparecimento de qualquer força política expressiva que não lhe siga as pisadas, em termos de discurso e em termos tácticos, compromentendo o debate plural na sociedade e, a prazo, a eventual redução da base social de apoio do MpD como resultado do aparecimento de organizações autónomas e políticamente credíveis.

            Entretanto, como força eleita da oposição, falha, não se revelando capaz de mostrar à sociedade qual deve ser, de facto, o papel da oposição no sistema democrático. A sociedade fica mais pobre, porque não se lhe oferece alternativas sérias e fiáveis; somente, intrigas, agitação e tentativas de golpes de mão, acompanhados de exigências de demissões, eleições antecipadas, etc.

 

            Outras iniciativas políticas, que vêm surgindo no país, são, quase que instântaneamente, modelados pelos padrões discursivos e tácticos já estabelecidos pelo caracter imediatista de procura do poder. O PCD é o exemplo mais flagrante de uma organização, que surge com um passivo enorme de desconfiança da sociedade, devido ao simples facto de alguns dos seus dirigentes não se terem refreado, na sequência do seu afastamento do poder, de expôr, com excessiva crueza, os seus ressentimentos e o desejo incontrolável de regresso ao poder, sem qualquer preocupação pelos meios utilizados.

 

            Algumas individualidades políticas deixam-se apanhar no frenesim das disputas pelo poder e dos equívocos que a classe política alimenta, e gozam de alguma notoriedade, enquanto se mostrarem controversas. Se a sua postura pública, ainda crítica e independente, se clarifica e o seu compromisso com a democracia se mostra inabalável, são imediatamente condenados ao ostracismo pelas mesmas forças que, pouco antes, teciam-lhes elogios e davam-lhes espaço privilegiado nos seus jornais.

 

            A actual classe política caboverdiana, apesar da diversidade da maioria esmagadora dos seus menbros, em termos de ideias, de objectivos e da relação com o político, tem basicamente uma origem comum: as movimentações que conduziram à independência nacional e as controvérsias geradas no seio e à sua volta, anteriores e posteriores a esse acontecimento. Assim, entre os políticos nacionais encontram-se combatentes e ex-combatentes; militantes de clandestinidade em Portugal e outros das células em Cabo Verde; rivais do PAIGC, antes e depois da independência; militantes expulsos ou saídos do PAIGC nos anos setenta; quadros de partido, criados e promovidos após a purga dessa força política e o abandono do projecto de unidade com a Guiné; e quadros refractários à dominação político-partidária do PAICV nos anos oitenta. Todos dizem-se democratas e podem, eventualmente, funcionar como tal,  mas é na relação concreta com o poder que denunciam a sua origem.

 

            O PAIGC, enquanto organização criada na base dos princípios do leninismo e imbuída de uma estrutura militaro-política para fazer face a uma guerra colonial de mais de dez anos, aprendeu, desde muito cedo, a exercer o poder e a resolver os problemas inerentes a esse exercício. Nesse aspecto ultrapassou, de longe, a sociedade caboverdiana, então confinada no império colonial português, com quem só viria a estabelecer ligações já numa fase avançada da sua existência. Não é, pois, de estranhar que na origem da participação política massiva dos caboverdianos, em 1974, os militantes desse partido tivessem estabelecido imediatamente a sua influência. Só eles, de facto, detinham o know-how de como organizar e de como mobilizar e canalizar a energia social para objectivos políticos específicos. O problema surge, porém, quando usam essa experiência para se eternizarem no poder e negaram à sociedade a possibilidade de determinar o poder que, em nome dela e sobre ela, é exercido.

 

            A vantagem, que o conhecimento dessas técnicas representa em determinados momentos históricos, de mudança profunda, envolvendo movimentos massivos da população, ou, então, na perservação de um regime autoritário, transforma-se no seu contrário, num ambiente de democracia. Quer dizer que oknow-how adquirido com, contra e à volta do PAIGC, mas que se baseia na mesma cultura organizacional, tende a tornar-se num peso terrível, em situações de normalidade democrática

 

            O drama da nossa classe política provém precisamente das dificuldades em se libertar desse tipo de conhecimento e de experiência, tornado inútil, nas novas condições do país. A sua obsessão pelo poder, porém, não a ajuda muito porque ao tentar conquista-lo, a todo o custo e imediatamente, revela muito da sua origem e dos métodos que aprendeu, levando a sociedade a reagir com desconfiança e sentimentos de rejeição.

 

            A possibilidade de participação política plena, que acompanha a implantação da democracia, abre o caminho para a resolução do conflito entre a sociedade e o poder. A oportunidade de aprendizagem política, que é oferecida, continuamente, pelo normal funcionamento das instituições democráticas, permite a criação e a afirmação de uma classe política totalmente liberada das tradições e métodos caducos de como chegar e manter-se no poder. 

 

            A revolução de cultura política e cívica, que isso implica, deve ser encarada como absolutamente necessária por aqueles que hoje se encontram engajados na construção da democracia. Porque, só deixando a sociedade livre para evoluir naturalmente nas suas relações com o político que poderemos ter a esperança de ver emergir uma verdadeira comunidade político- nacional, livre, positiva e dinâmica.

 

            Para isso, é,  porém, fundamental que deixemos o processo de institucionalização da democracia, em curso, prosseguir sem interrupções forçadas e que o seu sistema de referência fundamental - a Constituição - seja respeitado na íntegra, e defendido por todos, até o momento próprio, de uma reapreciação construtiva das suas virtudes e defeitos.



[5]  Samuel Huntington, Polical Order in Changing Societies, pg 10

[6] António Carreira, Cabo Verde - Formação e extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), pg 378

[7] Baltazar Lopes, O Dialecto Crioulo em Cabo Verde, pgs. 42 e 43

[8] Cláudio Furtado, A Transformação das Estruturas Agrárias Numa Sociedade em Mudança - Santiago, Cabo Verde

v Aristides Pereira, semanário Expresso, 20 de Novembro de 1993

 

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