Friday, September 5, 2025

Revisão Constitucional: desnecessária e inoperante

 

Revisão Constitucional: desnecessária e inoperante

                                                            Novo Jornal de Cabo Verde, Nov 1995

 

Revisão Constitucional: Desnecessária e Inoperante

                                                                                              Humberto Cardoso

Novo Jornal de Cabo Verde                                                        Nov/1955  

 

A escassas semanas da data marcada para as eleições legislativas, o processo eleitoral parece encontrar-se num impasse.

 

            A Lei Eleitoral (Lei 116/IV/94), que regula o processo, foi aprovada a 17 de Dezembro de 1994 pela Assembleia Nacional e promulgada pelo Presidente da República a 30 de Dezembro do mesmo ano. A sua publicação no Boletim Oficial, porém, só viria a verificar-se em Março de 1995. A entrada tardia em vigor da Lei Eleitoral 116/IV/94 implicou num possível incumprimento da norma constitucional que proíbe alterações na lei eleitoral em ano de eleições.

 

            Essa norma, artigo 102 da Constituição, estabelece que  a partir do ano anterior à realização de eleições e até ao apuramento dos resultados, a respectiva lei eleitoral não pode ser alterada ou revogadaA entrada em vigôr da Lei 116/IV/94 em Março/Abril de 1995, ultrapassando, portanto, o prazo constitucional, estabelecido pelo artigo 102,  aparentemente, torna impossível a sua aplicação nos procedimentos eleitorais que se avizinham.

 

            Entretanto, o processo eleitoral encontra-se em andamento: nomeou-se  uma Comissão Nacional de Eleições que merece o consenso das forças políticas; realizou-se  o recenseamento eleitoral que, não obstante algumas dificuldades, conseguiu resultados acima dos previstos; o Presidente da República, depois de reunir o Conselho da República, marcou as eleições legislativas para 17 de Dezembro de 1995 e as eleições presidenciais para 18 de Fevereiro de 1996; e a Comissão Nacional de Eleições já publicou o calendário eleitoral. O problema que se põe é o prosseguimento do processo, visto que irregularidades que, alegadamente, o enformam, particularmente no que concerna à aplicação da Lei Eleitoral, vêm sendo expostas na comunicação social e em declarações públicas de individualidades e partidos políticos.

 

            A suspeita inconfirmidade plena da Lei Eleitoral (116/IV/94) com o artigo 102 da Constiuição põe o sistema político e as forças políticas perante alternativas, nenhuma delas apontando uma saída clara e sem obstáculos do impasse:

 

            Alternativa A. A realização das eleições de 1995/96 de acordo com os procedimentos previstos pela lei eleitoral de 1990. Essa lei  não teria sido revogada pela Lei Eleitoral  116/IV/94 por virtude da sua publicação em ano de eleições, o que é explicitamente proibido pela norma constituicional constante do artigo 102 da Constituição. Esta via de solução do impasse apresenta dificuldades intransponíveis, nomeadamente: 1- a Lei Eleitoral de 1990 contem normas definitivsamente incostitucionais à luz da Constituição de 1992; 2- a sua adopção destruiria o consenso, chegado em Dezembro de 1994, entre as forças políticas quanto a divisão do país em círculos eleitorais; 3- a sua aplicação provocaria uma mudança radical da estratégia das forças políticas, a poucos dias do início da campanha eleitoral. 

 

            Alternativa B. Mudar a data da realização das eleições legislativas e presidenciais para o ano de 1996. Esta via traria dificuldades aos partidos políticos concorrentes em termos dos compromissos assumidos, dos recursos já disponibilizados para a campanha eleitoral, da confusão que, potencialmente, poderia gerar no eleitorado e do reescalonamento das eleições autárquicas, com todas as consequências daí derivadas. Além disso, a mudança de datas das eleições estaria condicionada a determinações constitucionais incontornáveis, quanto à duração dos mandatos dos órgãos de poder político.

 

            Alternativa C:  Prosseguir com o processo eleitoral na base da Lei Eleitoral 116/IV/94. Seguindo esta via salvar-se-iam as estratégias eleitorais já definidas pelos partidos e o esforço dispendido em implementa-las, mas o país sujeitar-se-ia aos custos, políticos e outros, de uma eventual impugnação futura das eleições por qualquer cidadão ou força política.

 

            O impasse para o sistema político, que isto representa, ironicamente, não foi causado por nenhuma acção de manipulação ou de fraude, mas sim por um caso tão fortuito como a publicação tardia de uma lei no Boletim Oficial. A publicação das leis no Boletim Oficial, uma exigência constitucional, que na nossa Constituição é penalizada com a inexistência jurídica da lei (artigo 292 da Constittuição), tem como finalidade evitar a existência de leis secretas, a que os cidadãos não teriam conhecimento, mas que o Estado poderia utilizar para legitimar acções de perseguição ou de penalização.

 

            Para o professor doutor Gomes Canotilho na sua obra “Direito Constitucional” (pg 780) a publicação é o acto mediante o qual os actos normativos são levados ao conhecimento dos seus destinários. Acrescenta ainda que costuma-se considerar a publicação, sob o ponto de vista jurídico, como um acto de comunicação e, portanto, como um requisito de eficácia do acto (acto de integração necessária) e não como um elemento de validação do mesmo. Contrapondo as sanções ineficácia e inexistência jurídicas  em caso de falta de publicação, Gomes Canotilho diz que a sanção mais leve de ineficácia jurídica radica-se “no facto de as leis começarem a produzir efeitos desde a sua aprovação (necessidade de promulgação, assinatura, referenda, etc), enquanto que a sanção de inexistência justifica-se pelo facto de “só a partir da publicação a lei adquire efeitos externos, vinculando todas as entidades, públicas e privadas”.

 

            Pesando estes argumentos no caso concreto da Lei Eleitoral 116/IV/94 note-se que, primeiro, não se trata aqui de leis secretas mas sim de uma lei aprovada por unanimidade num parlamento pluralista; segundo, que o procedimento legislativo até a lei ser considerada perfeita (fase de inciativa - projecto de lei , fase construtiva - deliberação e aprovação na AN, e a fase de controle - promulgação pelo Presidente da República) foram absolutamente correctos e atempados,. verificando-se atrasos de ordem administrativa somente na fase de integração de eficáciaterceiro, que para as forças políticas, com assento ou não no parlamento, a modelagem da estratégia eleitoral, a partir da aprovação da Lei Eleitoral 116/IV/94 no parlamento, seguiu os parâmetros aí definidos, facto que todos são unânimes em afirmar. Portanto, o que  a norma constitucional, constante do artigo 102 da Constituição, procura impedir - a manipulação das leis eleitorais a favor de uma ou mais forças políticas - não se aplica neste caso.

 

            Quer dizer, que a aplicação da sanção de inexistência jurídica no prazo que decorreu entre a promulgação do Presidente da República, datada de 30 de Dezembro de 1994, e a data de entrada em vigôr, Março/Abril de 1995, por falta de eficácia externa, embora formalmente correcta, não tem significado concreto para a sociedade e para as forças políticas: No periodo entre a promulgação e a publicação no B.O., em que a Lei Eleitoral 116/IV/94 não tinha existência jurídica, todas as forças políticas estavam a modelar o seu comportamento e as suas acções, presentes e futuras, de acordo com as normas nela estabelecidas. Menos racional parece, ainda, acrescer à pena de inexistência jurídica da Lei Eleitoral no periodo referido a sanção de inconformidade constitucional, por não respeitar os prazos que precavêm contra a  manipulação das eleições. Isso, como se o acto de perfeição da Lei eleitoral se tivesse verificado não em Dezembro de 94, mas sim em Março/Abril de 1995.

 

            A inconstitucionalidade puramente formal que tal decàlage parece implicar tem custos enormes para o sistema político.É precavendo contra tais situações de excessivos custos, derivados de uma interpretação demasiado formal da Constituição, que o legislador constituinte facultou ao Supremo Tribunal de Justiça, enquanto órgão de fiscalização da constitucionalidade, a possibilidade de ajuizar do alcance dos efeitos  em caso de declaração da inconstitucionalidade. O n. 4 do artigo 308 da Constituição é claro a esse respeito: No caso referido ns. 1 e 2, quando razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público de excepcional relevo, devidamente fundamentado o exigirem, poderá o Supremo Tribunal de Justiça fixar efeitos de alcance mais restrito do que os previstos nos ns 2 e 3.

 

            Uma possível via para ultrapassar o presente impasse seria, portanto,  a interposição de recurso de partes interessadas, nomeadamente titulares de orgãos de soberania e partidos políticos, para o Supremo Tribunal de Justiça para verificação dos actos, tais como a nomeação da Comissão Nacional de Eleições, o recenseamento eleitoral, os decretos presidencias que marcam as eleições legislativas e presidenciais, e o calendário eleitoral, que são baseados na Lei Eleitoral 116/IV/94. Estamos crentes que o STJ, enquanto Tribunal Constitucional,  encontraria vias para atenuar o efeito de actos fortuitos e despidos de significado político - a publicação tardia de um diploma - sobre um processo essencial à democracia, que é a legitimização do poder político através de eleições livres e plurais.

 

            A não conformação da Lei Eleitoral 116/IV/94 com o princípio defendido pelo artigo 102 da Constituição não é, contudo, pacífica. A aprovação da Constituição da Segunda República tornou inconstitucional um conjunto normas contidas na lei eleitoral de 1990, tornando-a completamente inefectiva. A introdução de uma nova ordem constitucional impõe a tomada de medidas legislativas para tornar exigíveisas normas constitucionais. Tais medidas são essenciais para se obter operatividade prática da própria Constituição, constituindo-se em o que Gomes Canotilho e Vital Moreira na “Constituição Portuguesa Anotada” chamam de mediação legislativa.(1047) Uma dessas medidas é, naturalmente, a lei eleitoral que regula todo o processo de legitimização democrática.

 

            A inconstitucionalidade de um número significativo de normas, contidas na lei eleitoral de 1990, criou o imperativo de se legislar sobre o processo eleitoral: A Constituição de 1992 exigia uma lei eleitoral em conformidade com os seus princípios e normas. Em certas ordens constituicionais como a portuguesa, existe mesmo a figura de inconstitucionalidade por omissão que se aplica nos casos em que o Estado falha em desenvolver actividade, legislativa ou outra, para tornar funcional a Constituição. Não temos essa figura de inconstitucionalidade por omissão na nossa Constituição, mas o dever de legislar é real e incontornável.

 

            A Lei Eleitoral 116/IV/94 cumpre esse dever de legislar numa matéria fundamental como é o processo eleitoral. Sendo a primeira lei eleitoral em conformidade com a Constituição, não parece evidente que o artigo 102 da Constituição se lhe aplique em pleno. A intenção do legislador constituinte no artigo em questão é de prevenir contra alterações ou revogações de carácter manipulatório de leis eleitorais previamente existentes. O conflito, criado pela entrada tardia em vigor, Março/Abril de 1995, da Lei Eleitoral 116/IV/94 por força de negligências de carácter administrativo, cede perante o imperativo constitucional de legislar nessa matéria sob pena de não operacionalização de princípios fundamentais consagrados na Constituição, designadmanete o princípio do sufrágio universal, directo, secreto e periódico para a eleição dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local.

 

            A inexistência de uma lei eleitoral alternativa, susceptível de ser repristinada, confina os efeitos no sistema de tal conflito, particularmente quando se tem em conta que o acto constituitivo da Lei Eleitoral 116/IV/94 verificou-se num tempo respeitador do espirito do artigo 102 da Constituição - ano anterior às eleições. Daí se pode concluir que o impasse é aparente e que só resulta do facto de certos raciocínios não terem em consideração que, com a Constituição de 1992, houve, de facto, uma ruptura constitucional e que, portanto, urgia e urge criar os mecanismos necessários para tornar exigíveis as normas constantes da nova ordem constitucional.

 

            Nesta perspectiva, a via de uma revisão extraordinária e pontual da Constituição parece uma reacção excessiva e perigosa para resolver um problema cuja origem não tem qualquer base no que o artigo 102 da Constituição procura precaver, mas sim em aspectos contingenciais, ligadas à actividade administrativa.

 

            A Constituição da II República só tem três anos. Submetê-la, neste momento,  a processo de revisão, mesmo que pontual, não é responsável, nem aconselhável. Ainda está em progresso todo o processo que Gomes Canotilho chama de solidificação da legalidade democrática e, portanto, acções de revisão, pela insegurança constitucional que lhes é inerente, constituem ameaças sérias, particularmente nos primeiros anos de implementação de uma ordem constitucional. É por essa razão que certas constituições, como a Constituição Portuguesa de 1976, incluem uma norma que proíbe quaisquer revisões, ordinárias ou extraordinárias, no tempo correspondente à I Legislatura. Não temos essa norma na nossa Constituição, mas considerando a necessidade de estabilidade da Constituição devia-se refrear de qulquer tentativa de revisão num tempo tão curto após a sua entrada em vigor.

 

            A revisão extraordinária da Constituição como uma saída expedita para o actual impasse peca por vários erros e equívocos:

 

            Primeiro, diz-se que será uma operação rápida (30 minutos) e consensual não causando grandes sobressaltos. Não é essa a conclusão que se poderá retirar da leitura da Constituição e nem poderia ser. O processo de revisão é um processo particularmente agravado, a fim de evitar modificações dos mecanismos constitucionais ao sabor de relações conjunturais de força entre os protagonistas políticos . Se não vejamos: 

 

            - Só após cinco anos após a promulgação da Constituição é que o parlamento poderá assumir poderes de revisão;

            - para uma revisão extraordinária é necessário que quatro quintos dos deputados aprovem uma resolução, que após a sua publicação no Boletim Oficial, confere à AN poderes de revisão;

            - a iniciativa da revisão é exclusivamente dos deputados, ficando de fora o Presidente da República, o Governo e mesmo os grupos parlamentares;

            - diferentemente de outras inciativas legislativas que segundo o regimento da AN devem ser subscritos por um máximo de 15 deputados, os projectos de revisão exigem um mínimo de um terço dos deputados em efectividade de funções;

            - o prazo para apresentação de projectos de revisão é de sessenta dias a partir do momento em que fôr apresentado o primeiro projecto de revisão;

            - cada alteração deverá ser aprovada por uma maioria de dois terços;

 

            Pode-se distinguir três fases no processo de revisão:

 

            Uma primeira fase em que os deputados, após deliberação chegam a acordo sobre a matéria a ser objecto de revisão e aprovam a resolução que consubstancia esse acordo. Esta fase termina com a publicação da resolução no Boletim Oficial, sob pena de inexistência jurídica ( artigo 292 da Constituição).

 

            A segunda fase inicia-se com a apresentação do primeiro projecto de revisão. Considerando o prazo de sessenta dias para a apresentação de outros projectos é de se concluir que a segunda fase poderá prolongar-se até o fim desse tempo. É a posição de Gomes Canotilho em relação ao caso português, cujo prazo de apresentação de projectos de é de trinta dias, quando diz que “...não existe prazo constitucionalmente marcado para se iniciar o processo de revisão após a deliberação de assunção de poderes, podendo talvez considerar-se aplicável por analogia o disposto no artigo 285 -2 (trinta dias)”.

 

            Tentativas de encurtamento do prazo pela via de eliminação da possibilidade de apresentação de outros projectos de revisão através de consensos negociados entre forças políticas ferem o princípio de que a iniciativa de revisão é exclusiva de deputados, excluindo, portanto, as representações dos partidos no parlamento que são os grupos parlamentares (artigo 20 do regimento da AN). Outrossim, tais tentativas prejudicariam a exploração do contraditório, função essencial do parlamento, enquanto representante dos cidadãos e sede das diferenças de posições, interesses e pontos de vistas, próprias de uma sociedade plural.

  

            A Constituição no n. 2 do artigo 310 estabelece o número mínimo de um terço dos deputados em efectividade de funções para subscrever um projecto de revisão, mas falha em definir o número máximo de subscritores. No Regimento da AN, o n.1 do artigo 121 limita claramente o número de subscritores de um projecto de lei a quinze deputados. Isso porque deixando ilimitada ou exagerada o número de subscritores a efectividade da AN saíria consideravelmente diminuída. A interpretação que se deve dar, portanto, à elevação a um terço o número de deputados que devem subscrever um projecto de revisão é que o legislador constituinte queria  tão somente afirmar a importância excepcional da revisão constitucional. Esse parece ser o entendimento de Jorge Miranda na obra Manual do Direito Constitucional quando diz que “o Regimento limita a vinte Deputados o número de subscritores de um projecto de lei  e a mesma regra pode estender-se aos projectos de revisão, por aqui também proceder a sua ratio legis: evitar pressões sobre a Assembleia”.

 

            A apresentação de projectos de revisão no prazo definido conduz ao que Jorge Miranda chama de“cumulação de todas as iniciativas num só processo, numa regra de condensação destinada a assegurar uma ponderação simultânea e globalizante das modificações constitucionais e a garantir a unidade sistemática da Lei Fundamental”

 

            A terceira fase começa com a discussão conjunta de todos os projectos de revisão e termina com a aprovação, uma a uma, de cada alteração por uma maioria qualificada de dois terços.

 

            Ora, considerando tudo isto não parece que a via de revisão constitucional seja realmente fáctivel. A ser realizada em tempo recorde poderia incorrer em vícios que, a ajuntar a outros (designadamente a assunção de poderes de revisão pela mesma AN que a tinha aprovado, o facto da AN se encontrar no fim da sua legislatura e, portanto, com a sua legitimidade para actos excepcionais consideravelmente diminuída  e o facto da inciativa, mesmo que tenha sido em forma de sugestão, veio publicamente do Presidente da República), constituíriam precedentes perigosos para a estabilidade da Constituição e a solidez das instituições constitucionais.

 

              Segundo, não é evidente que a revisão constitucional, seja no sentido de introdução de uma norma transitória seja no de alteração do próprio artigo 102 da Constituição, irá resolver o problema da aplicação da Lei Eleitoral 116/IV/94. A aprovação do novo texto da Constituição afecta o direito ordinário vigente. É nesse sentido que com revisão proposta se procura alterar a relação entre a Lei Eleitoral 116/IV/94, em vigor desde Março/Abril, e a Constituição, particularmente no que concerna ao artigo 102. A alteração que se pretende é que com a Constituição revista a Lei Eleitoral 116/IV/94 tenha aplicação nas próximas eleições.

 

            Ora, a propósito dessas manipulações, Gomes Canotilho e Vital Moreira, na obra citada, diz o seguinte: “Quanto ao direito ordinário contrário à Constituição antes da revisão, não deverá considerar-se como retroactivamente convalidado, só por deixar de ser contrário à Constituição após a revisão. Desde logo, por uma razão prática: a admitir-se essa solução, estaria aberta a porta para revisõesantecipadas por via de lei ordinária, feitas à conta de futura revisão constitucional; por outro lado, a razão invocada para convalidar o direito ordinário anterior à Constituição - designadmaente a de que os órgãos de fiscalização da constitucionalidade não podem ser guardiões de uma ordem constitucional perimida - não colhe aqui, pois a ordem constitucional continua a ser a mesma, embora parcialmente alterada. Portanto, a validação não poderá retroagir ao tempo anterior à lei de revisão e só tem sentido em relação à inconstitucionalidade material, mas não em relação à inconstitucionalidade formal ou orgânica, pois esses tipos dizem respeito à formação do acto normativo, não podendo ser sanados aposteriori.

 

            Finalmente, a revisão extraordinária de Constituição proposta, ao dissuadir o recurso a órgãos de fiscalização da Constituição, designadamente o Supremo Tribunal de Justiça, em favor de uma intervenção directa na Lei Fundamental, constitui mais um factor de afunilamento da vida político-institucional do país. Não se dá a oportunidade a certas instituições para cumprirem o seu papel, convida-se outras a um protagonismo deslocado e deixa-se para os deputados e, em última análise, para os partidos políticos a resolução da questão. Mais uma vez a complexidade de funcionamento que o  modelo constitucional exige é sacrificado para permitir expressões exacerbadas de interesses partidários, resultando daí que o confronto desses interesses, dificilmente desemboca na substanciação e densificação do interesse geral e nacional.

 

            Nas vésperas do acto eleitoral de reprodução do regime político instituído pelo vontade soberana do povo caboverdiano é fundamental que a ordem democrática estabelecida não seja perturbada por quaisquer interferências na Lei Fundamental. Também revela-se de maior importância que os partidos políticos, no momento em que a sociedade se polariza para as eleições,  não se envolvam em confrontos que vão ao âmago da ordem constitucional estabelecida.

 

            O processo que conduziu à adopção da primeira lei eleitoral em conformidade com a Constituição da II República foi, no essencial, conduzido correctamente, merecendo apoio de todas as forças políticas. Em nenhum aspecto vai perturbar o processo eleitoral ou condicionar os resultados das eleições. Todas as forças políticas, a julgar pelas suas declarações que vão ganhar as eleições, se não mesmo obter a maioria absoluta, testemunham que não têm qualquer dúvida que todo o processo vai ser justo, sem qualquer indício de tentativa de fraude.

 

            Em tal ambiente pré-eleitoral de uma certa confiança de todos no sistema político instituído e nos processos e procedimentos eleitorais é, no mínimo,  desconcertante que um excessivo formalismo na interpretação de uma norma da Constituição conduza a uma situação potencialmente perigosa para o edifício juridico-político que enforma o campo de actuação e de expressão das forças políticas. A resolução do impasse pelo recurso ao Supremo Tribunal de Justiça ou por uma interpretação da Lei Eleitoral 116/IV/94 como a primeira lei eleitoral, não se aplicando em pleno o artigo 102 da Constituição, mostra-se de extrema importância para o futuro do sistema político caboverdiano. Futuro esse ligado intimamente à estabilidade social e política  que constitui a base sobre a qual o desenvolvimento do país poderá verificar-se.

 

            Neste momento sensível a actuação responsável dos órgãos de soberania e das forças políticas revela-se essencial para a manutenção da confiança no sistema político e fundamental para a sociedade que, após a polarização e as clivagens pré-eleitorais,  espera uma convergência de esforços pós-eleitoral para a resolução dos problemas urgentes do país.

CARLOS VEIGA: O PRESIDENTE NECESSÁRIO

 

Novo Jornal de Cabo Verde , Out 1995

 

 CARLOS VEIGA: O PRESIDENTE NECESSÁRIO

 

 

            As próximas eleições gerais de 1995/96 estão a ser vistas por forças políticas que permeiam todo o espectro político caboverdiano como a mãe de todas as batalhas. Estarão em jogo, de um lado, a afirmação e o incrustamento de interesses individuais e de grupos e, de outro, a reafirmação do interesse nacional.

            A reposição do interesse nacional - como princípio último em relação ao qual a definição plural de objectivos, as diferenças de orientação e a liberdade gozada por cada um encontram os seus limites e a sua justificação básica - revela-se de importância central, neste momento crucial da vida do país.

            Tal interesse articula-se à volta de dois aspectos fundamentais:

            - A manutenção de um clima socio-político favorável ao processo de institucionalização em    curso, no quadro do modelo constitucional e das leis existentes;

            - A focalização das energias e da atenção da sociedade no esforço, decisivo e sem paralelo   na história  do país, para a construção de uma economia auto-sustentada.

 

            A credibilidade das forças e personalidades políticas depende da assunção plena dos interesses actuais e urgentes da nação caboverdiana. As propostas que incarnam só ganham consistência e relevância para o global da sociedade na medida em que concorram para a realização plena desses mesmos interesses.

            A procura do poder só se justifica por uma crença inabalável em que as soluções preconizadas conduzem ao bem geral. Ou seja, a credibilidade dos candidatos às próximas eleições subordina-se à apresentação de uma visão de futuro que envolva estratégias de estabilização política, de dinamização económica, de aumento da coesão social e da consciência cívica e comunitária, e, também, da expressão e engrandecimento da cultura caboverdiana.

            A credibilidade dos candidatos aos orgãos de poder político dependerá, ainda, do grau de confiança que puderem inspirar no eleitorado caboverdiano no que concerne à aceitação e defesa da Lei Fundamental - a Constituição - e das demais leis e instituições nela baseadas; e, também, de que saberão sempre agir dentro, com e através das instituições, respeitando escrupulosamente os processos e procedimentos constitucionalmente estabelecidos.

            O nível dessa confiança não deixará de estar ligado à actuação concreta dos candidatos, ao longo destes cinco anos, na criação e consolidação das instituições nacionais. Porque é só   através da manifesta vontade de trabalhar no quadro das instituições democráticas, enquanto instrumentos e expressões do interesse público, que personalidades e forças políticas demonstram, inequivocamente, a sua disponibilidade em procurar o interesse geral, não obstante as diferenças de perspectiva, que naturalmente albergam quanto à realização dos objectivos nele compreendidos.

            A experiência de cinco anos de construção da democracia é reveladora das extraordinárias dificuldades que se teve, e que se tem, de enfrentar para que a nova cultura política, de trabalhar dentro, com e através das instituições, suplantasse a cultura arreigada de um funcionamento à margem das instituições. As instituições, antes tidas como simples cortinas de fumo para esconder onde, como e porquê as decisões eram tomadas, vêem-se, actualmente, como o palco de actuações e interacções transparentes, em que as manifestações do contraditório são essenciais à definição do conteúdo e da forma das relações entre as instituições, entre elas e a sociedade, e à procura do interesse público.

            O protagonismo dos eleitos, personalidades políticas e forças políticas, com todas as suas contradições, dúvidas, ansiedades, resistências à mudança, denúncias e, mesmo, fugas ao funcionamento no quadro institucional estabelecido, serviu para testar de forma extensiva e exaustiva o sistema político no que respeita aos limites, à flexibilidade e à capacidade de absorção de choques. A visibilidade e o impacto dessas acções, que o uso pleno dos direitos civis e políticos garante, permitiram que a sociedade observasse a evolução e o grau de adaptação de indivíduos e organizações às exigências do novo sistema.

            Como seria de esperar, a linearidade de evolução, seja de indivíduos seja de grupos ou de organizações, não constituiu, de forma alguma, a regra. Alguns iniciaram uma evolução positiva e acabaram por cair num negativismo, que ameaçou colocá-los fora do sistema. Outros refugiaram-se num passadismo que pouco inspiração podia trazer-lhes para enfrentarem os desafios do momento. Outros, ainda, caminharam, com receios, dúvidas e ansiedades, os trilhos que levariam à concretização da visão, exorcizando, a cada passo, os demónios que os tentavam a emular os padrões mais familiares de estar na política, ou seja, os do nosso passado recente.

            Casos houve dos que se deixaram embriagar por um individualismo perverso e, fazendo uso das liberdades garantidas pelo novo sistema, passaram ao assalto de tudo: da boa educação, do civismo, da verdade, dos interesses da comunidade, da imagem do país, etc.

            A sociedade caboverdiana abraçou uma forma de viver que elege como valor fundamental a liberdade individual dos seus membros, estimula a expressão da diferença e fornece os meios e as vias para que, periodicamente, a sua orientação global seja legitimidade e renovada. Em tal ambiente, o percurso dos indivíduos e das organizações traduzem as contradições entre a realidade vivida, a realidade sonhada e as heranças e os dramas que constituem o fardo que a nação tem transportado, ao longo da sua história. E, como em toda a experimentação humana e vivência social, é no livre jogo dessas contradições que homens e mulheres se revelam, em toda a sua grandeza, mas também em toda a sua pequenez.

            Hoje, no fim dos cinco anos de tal experimentação e, também, no limiar da passagem para uma nova fase de realização do sonho, impõe-se um olhar crítico e construtivo, e ao mesmo tempo compreensivo, em direcção a esses percursos. Isso porque importa, sobremaneira, que a sociedade potencie ao máximo os ganhos individuais e colectivos conseguidos, de forma a garantir uma evolução positiva e segura daquilo que globalmente se reconhece como essencial à Nação.

            Outrossim, a nação não pode deixar-se aprisionar numa discussão permanente dos fundamentos da sua existência como comunidade política, sem que corra riscos tremendos de paralisia, de estagnação e, mesmo, de regressão. O exercício é ainda mais inútil, quando é cada vez mais evidente que a forma escolhida para se constituir enquanto comunidade política, garante  estabilidade, direcção e controlo políticos e, em simultâneo, o equilíbrio das partes. A obstinação na discussão dos fundamentos de um sistema funcional e já com um grau razoável de sucesso só esconde a falta de vontade em trabalhar com esse sistema e a tentativa de fuga à responsabilidade que, imperativamente, deve acompanhar a disponibilização em prestar serviço público nos orgãos de poder político.

            A Constituição pode não ser perfeita, mas é so trabalhando com ela e não contra ela, que se garante a continuidade da comunidade política nacional. Ela própria, enquanto ordenamento jurídico-político basilar do país, propicia as condições ideais para a observação crítica e prática das suas imperfeições e estabelece as regras para o seu aperfeiçoamento. Perante isso e a funcionalidade insofismável do sistema que a Constituição define, a sua contestação de fundo é, no mínimo, incongruente e somente realça os perigos de um regresso à uma fase pré-constitucional.

            Nas eleições de 95/96, ficará decidido se o país continuará a viver sob a ameaça constante de bloqueios institucionais e de eleições antecipadas. Se o novo paradigma político e socio-económico, contido na Constituição da República, será definitivamente aceite por todos, e se serão eliminados os equívocos que a persistência dos elementos ideológicos do outro regime ainda provocam. Se, com o fim da luta ideológica entre os dois regimes, o monopólio, pelas forças políticas, do debate e da participação em todas as esferas da vida pública será definitivamente quebrado e o espaço ficará aberto, finalmente, para protagonismos nos mais diferentes campos, nomeadamente, cívicos, comunitários, científicos e culturais, sem as inibições criadas, hoje, pela preocupação geral, e quase compulsiva, por rótulos político-partidários.

            Uma instituição da República distingue-se pelo essencial que lhe é reservado na conservação e futuro desenvolvimento da comunidade nacional: O Presidente da República. A ele, enquanto representante da comunidade política, é entregue, nomeadamente, a tarefa de defender a Constituição, de vigiar o cumprimento das normas próprias do Estado de Direito democrático, de intervir para resolver questiúnculas entre as forças políticas potencialmente bloqueadoras do sistema, e de inspirar a nação no esforço consentido na luta para a sobrevivência e o engrandecimento.

            A escolha do Presidente da República é uma das tarefas mais delicadas em todos os sistemas políticos, seja os que lhe dão poderes de governação, como é o caso dos sistemas presidenciais, seja nos regimes parlamentares em que a sua acção é mais confinada e exerce o papel de árbitro do sistema, seja, ainda, nos sistemas mistos em que os poderes de intervenção variam conforme tenham pendor mais presidencial ou mais parlamentar.

            O prestígio do Presidente da República depende, sobretudo, da qualidade humana que o seu titular lhe empresta enquanto serve a Nação e, quase, independe dos poderes específicos, que a Constituição lhe confere. A importância do Presidente da República é particularmente maior, quando a comunidade politico-nacional se encontra num processo de consolidação, ou, então, se vê numa crise que ameaça a sua própria existência.

            O seu papel de foco das expectativas e esperanças da nação e de garante da sua unidade ganha maior expressão, quando forças externas ou internas, posicionam-se para subverter os fundamentos, os valores ancestrais, a cultura e a soberania da nação.

            A comunidade político-nacional caboverdiana, no momento em que se constrói como uma democracia, após anos de uma transição serena mas custosa a partir de um regime totalitário, apresenta fragilidades que importa confrontar e ultrapassar, definitivamente, para que a energia e a vontade da nação se mobilizem e incidam na realização do interesse geral. 

            A escolha do Presidente da República, neste momento sensível da história do país, é crucial para se garantir uma orientação que mantenha a esperança colectiva de ver fechadas todas as feridas originadas no processo de abandono do regime do partido único; que inspire confiança numa participação efectiva na vida nacional, em igualdade de oportunidades e em conformidade com as leis estabelecidas; e que reforce o sentido de pertença à nação.

            A pessoa ideal para isso não existe. Os protagonistas históricos não existem a priori ou ao lado da História. Surgem em momentos de mudanças rápidas e profundas, distinguem-se pela sua capacidade de rápida apreensão do sentido da movimentação histórica e agigantam-se, quando pela sua intervenção, incarnam e explicitam o que nos outros constituiu uma intuição mais ou menos clara. Tornam-se líderes, e uma química muito especial entre eles e o povo cria uma empatia mútua que revigora o movimento de mudança e nutre a esperança de sucesso no sentido desejado. Diz-se, então, que a figura tornada histórica tem o carisma que é capaz de mobilizar energias e vontades para a consecução de objectivos potencialmente revolucionários.

            A nação caboverdiana, num dos momentos mais dramáticos da sua história produziu um líder: Carlos Veiga.

            Como várias outras figuras históricas que, hoje, vemos como gigantes da sua época, poucos aspectos da sua vida pública vaticinavam o papel central que Carlos Veiga iria desempenhar na vida do país e a estatutura que adquiriria, após o ano de 1990.

            Profissionalmente respeitado e gozando de simpatia em vários círculos, tornou-se uma figura nacionalmente reconhecida no parlamento do regime do partido único. A abertura política iniciada em Fevereiro de 1990 reuniu à volta dele figuras políticas com alguma história de contestação do regime que, indepedentemente das motivações pessoais ou de grupo que as animavam, sentiram que a força política nascente teria que ter Carlos Veiga como seu cartão de apresentação à sociedade caboverdiana.

            Dessa circunstância algo fortuita e, aparentemente, sem grandes consequências, considerando o passado político do escolhido, nasceu uma dinâmica que ainda hoje está longe de ter corrido completamente o seu curso. Colocado à frente do embrionário Movimento para Democracia (MpD), percorreu todos os pontos do país. Por toda a parte foi espantosa a simpatia que angariou e a atenção com que as suas palavras foram escutadas. De líder de um pequeno grupo de pessoas, eventualmente por conveniência de alguns dos seus companheiros, rapidamente se tornou no líder da maior movimentação popular da história do país. O MpD, reunido em Novembro do mesmo ano na sua primeira Convenção, ratificou o que era patente para todos: Carlos Veiga era o líder incontestado da força política que iria protagonizar a liderança do movimento inspirado no desejo de mudança da sociedade caboverdiana.             

            A História é pródiga em figuras projectadas para a realização de grandes feitos, e que são abandonadas no momento seguinte. São estrelas fulgurantes que brilham durante um certo tempo, extasiam as pessoas e reacendem a esperança para, logo de seguida, desaparecerem sem rastro. Não foi o caso de Carlos Veiga.

            A sua nomeação para o cargo de Primeiro-Ministro colocou-o no centro da acção de transformação do sonho da liberdade e da democracia numa realidade palpável e cada vez mais sentida por todos os caboverdianos. Tal tarefa não tinha a simplicidade feroz das mudanças revolucionárias. Pelo contrário, Carlos Veiga viu-se como o reformador de um sistema nos antípodas da democracia, tendo como companhia no processo, precisamente, a força política que tinha implantado e dirigido o sistema rejeitado.

            O absurdo da situação só podia ser ultrapassado enquanto se salvaguardasse duas coisas: a visão clara do que se pretendia para o país e o apoio das forças sociais que derrotaram o regime de partido único.

            A visão contida no Programa do MpD e no Programa do Governo é produto de  contribuições de muitos cidadãos, dentro e fora do MpD. Mas a sua aglutinação em algo coerente, a sua abrangência e a sua pertinência para Cabo Verde no mundo após Guerra Fria, deve muito à intuição e a visão pessoal de Carlos Veiga. Não é por acaso que é ele que a articula de forma mais clara e coerente, e que, pelas acções e combatividade, a mantém sempre viva.

            A conservação da unidade das forças sociais e das personalidades políticas que estiveram na origem do MpD e constituíram o movimento popular de 1990 é obra principalmente de Carlos Veiga. Noutros países, muitas vezes sem os grandes constrangimentos à mudança que se encontraram em Cabo Verde, muito dificilmente se verificou a unidade da oposição e, nos casos raros em que isso aconteceu, rapidamente se fracturou em pequenos grupos e partidos políticos após a implantação da democracia. No nosso país, cinco anos depois, pode-se afirmar que a base do movimento se manteve relativamente intacta, salvo a saída de um pequeno grupo de dirigentes.

            Essa proeza confirma Carlos Veiga como a grande figura consensual do nosso país.

            Para os que se queixavam da permanência de personalidades de outro regime em posições de influência, Carlos Veiga tinha uma palavra de esperança de que as mudanças de direcção das instituições e a instauração do Estado de Direito eliminariam as arbitrariedades e as injustiças. Para outros que clamavam por medidas drásticas, Carlos Veiga fazia um apelo à calma e ao seguimento dos procedimentos democráticos  instituídos. Para outros, ainda, outrora próximos do antigo regime, que se assustavam com as transformações em curso, Carlos Veiga falava de mudanças mas na tranquilidade e na serenidade.

            Entretanto, porém, mudanças profundas continuavam. A realização suprema foi  a  adopção, um ano depois das eleições, da Constituição da Segunda República, democrática e pluralista, e da nova Bandeira Nacional, pondo fim a qualquer veleidade de continuidade do regime anterior.

            Noutros domínios, as necessidades de operacionalização das reformas conduziam a adequações sucessivas, em termos de estrutura de Governo. O estilo consensual da liderança de Carlos Veiga não o impedia de fazer as mudanças necessárias no elenco governamental e na concentração de poderes no seio do Governo. Tais posições de força, que não excluíam, mesmo, dirigentes do MpD, acabaram por gerar descontentamentos que Carlos Veiga procurou gerir de acordo com o seu estilo próprio. Quando, porém, um pequeno grupo de dirigentes se lançou em acções directamente contra a sua liderança e os fundamentos do processo sufragado, Carlos Veiga aceitou o repto e tomou a iniciativa de convocar uma convenção extraordinária do partido do Governo, para resolver a situação.

            Essa convenção extraordinaria, marcada para Janeiro de 1994, foi ganha facilmente porque se constatou que, mesmo após três anos de governação, o apoio popular a Carlos Veiga continuava imbatível. Os militantes e  a base popular de apoio do MpD mais uma vez confirmaram-no como o líder reconhecido do MpD. Seguiu-se a essa convenção uma luta tremenda no Parlamento, na qual, os que se tinham auto-excluído do MpD se juntaram à oposição parlamentar para derrubar o Governo. Mais uma vez, o papel de Carlos Veiga em assegurar a unidade do grupo parlamentar do MpD que, recorde-se, sempre teve um grande número de independentes, foi crucial para a pesada derrota da oposição, através da aprovação de uma Moção de Confiança ao Governo. 

            A partir daí, a realização completa do mandato do primeiro Governo democrático da história de Cabo Verde tornou-se uma certeza. O país conseguia um feito extraordinário de, nos primeiros anos da democracia, ter levado o Governo saído das eleições, a cumprir inteiramente uma legislatura.

            Isso foi possível, também, porque, a outro nível, Carlos Veiga soube gerir a relação do Primeiro-Ministro com o Presidente da República.

            Mascarenhas Monteiro, candidato apoiado pelo MpD nas eleições presidenciais de 1991, distanciou-se desse partido no processo de adopção da Constituição da Segunda República. Contestando o sistema de Governo proposto e, mesmo, a necessidade de uma nova Constituição, o Presidente da República entrou numa rota de colisão com o Parlamento e com o Governo, da qual não resultou uma crise institucional porque, mesmo discordando publicamente, decidiu promulgar a Constituição.

            O papel do Primeiro-Ministro no contornar das diferenças e na prevenção das tensões que se seguiram é, por demais, conhecida, apesar de acções e omissões graves por parte do Presidente da República.

            A riqueza e complexidade das situações vividas nestes cinco anos de construção da democracia evidenciaram qualidades de liderança e de combatividade de Carlos Veiga. A popularidade de que continua a gozar revela-o como o grande construtor do consenso que manteve as forças democráticas unidas ao longo das duras batalhas para a reforma do sistema político. O sucesso conseguido, contra algumas previsões, identifica-o como portador de uma visão e de uma grande capacidade para mobilizar energias para a sua realização.

            A questão que se põe, agora que uma segunda fase na construção da democracia se vai iniciar e que o país, imperativamente, vai pôr toda a sua energia na criação de uma economia auto-sustentada, é se Carlos Veiga deverá continuar a ser Primeiro Ministro de um Governo do MpD ou se deverá candidatar-se a Presidente da República.       

            O investimento de confiança e de esperança que o povo caboverdiano já fez em Carlos Veiga, elevou-o à posição de primeira figura política nacional. A questão que se põe é se, com a sua visão, o seu carisma, a sua capacidade de criar consensos e de inspirar confiança no futuro, Carlos Veiga reunirá as melhores qualidades para imprimir ao cargo de Presidente da República a projecção e o papel fundamental na consolidação da unidade da Nação caboverdiana e na congregação da vontade necessária para enfrentar os grandes desafios do desenvolvimento dos próximos anos.

            Outrossim, importa analisar se deixar Carlos Veiga no MpD não se constituirá num confinamento das acções e do papel de um homem que já provou que o que tem para dar à sociedade e a Cabo Verde ultrapassa quadros puramente político-partidários e conjunturais.

            Por outro lado, é evidente que, ao nível de maturidade já atingido pela democracia caboverdiana, em que as principais reformas já foram realizadas pelo Governo de regime de Carlos Veiga, importa que essas reformas sejam assumidas por todos e devidamente interiorizadas.

            Esse papel não é fundamentalmente de governos mas sim de quem tem o principal dever de defender e velar pelo cumprimento da Constituição: O Presidente da República.

            A acção de Carlos Veiga como Presidente da República teria, pois, um alcance e uma abrangência, em termos de garantia de continuidade e consolidação do regime instituído pela vontade soberana do povo a 13 de Janeiro de 1991, que a sua continuidade à frente do governo que irá sair das próximas eleições não lhe permitiria, pela simples razão de que não será mais governo de regime.

            Para o MpD, oferecer à Nação o seu líder como Presidente da República, será um grande sacrifício, mas um sacrifício necessário. Organizações como o MpD, que resultaram de movimentações políticas massivas, tem o dever de, em tempo próprio, saber ultrapassar a sua existência à sombra do líder carismático, que tais movimentações produzem, e lançar-se numa estruturação interna que garanta que, na normalidade, o partido continuará a desempenhar um papel fundamental no sistema político. Adiar o momento de passar a outro nível de maturação como organização política poderá ser fatal, não sobrevivendo o partido ao seu líder.

            A democracia caboverdiana é ainda bebé e a complexidade que envolveu a sua implantação tornou extremamente difícil que surgissem vários líderes com a estatura e a visão de Carlos Veiga. Potenciais líderes perderam-se por falta de uma compreensão básica do processo. Alguns, em certas posições, colocaram-se numa situação tal, que muito dificilmente estarão em condições de dar um contributo decisivo sem que, consciente ou inconscientemente, participem na manutenção dos equívocos que alimentam as feridas abertas na sociedade caboverdiana, prejudicando a unidade da nação.

            A comunidade político-nacional precisa de se reconhecer como tal. E todos os cidadãos caboverdianos, hoje munidos de todos os direitos civis e políticos, deverão sentir-se como parte integrante dela e responsáveis pela sua sobrevivência e pelo seu futuro. O homem para incarnar o sonho de reconciliação nacional e da criação de uma vontade nacional dirigida para o desenvolvimento, é Carlos Veiga.

 

            No interesse da Nação, Carlos Veiga deverá considerar seriamente a sua candidatura para Presidente da República - como o presidente necessário à consolidação das instituições e aglutinador da nação para as tarefas do desenvolvimento.   

Comunicação Social Março de 2007

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