Debate sobre a
situação da Justiça
Humberto
Cardoso
Outubro
de 2005
Sr. Presidente,
senhores membros do Governo, colegas deputados
A Justiça em
Cabo Verde está em vias de ganhar a massa crítica necessária, em termos de
componentes e grau de institucionalização dos mesmos, para que em permanência
dispense o que todos dela esperam: a protecção dos direitos dos cidadãos, o
dirimir dos conflitos públicos e privados, a repressão da violação da
legalidade democrática, o travão efectivo a tentações tirânicas de maiorias
conjunturais.
Os novos códigos,
o Código Penal e o Código do Processo Penal, e a aprovação pela
Assembleia Nacional da Lei de instalação do Tribunal
Constitucional, neste último ano, juntaram-se a outras acções de
institucionalização da Justiça que, seguindo o plano implícito na Constituição
de 92 e em leis estruturantes dela derivadas, vêm construindo um
Estado de Direito democrático onde a independência dos juízes é garantida, a
conformidade das acções do Estado com a Constituição é verificada e os direitos
fundamentais dos cidadãos e das minorias recebem a devida protecção.
Perante o esforço
já feito a expectativa dos cidadãos em ter rapidamente uma Justiça efectiva
porque independente, determinada e célere é muito grande. É isso que, nossa
opinião, as sondagens do Afrobarómetro revelam. A confiança dada à
Justiça é fundamentalmente a manifestação da vontade de todos em ver funcionar
em pleno o mecanismo essencial a uma existência baseada na liberdade e na
possibilidade de todos çoncretizarem os seus sonhos e as suas ambições ao mesmo
tempo que se realiza o interesse colectivo, se garante os direitos fundamentais
designadamente os direitos de propriedade e os direitos contratuais e se
assegura a ordem, a segurança e a tranquilidade social.
A confiança dos
cidadãos não resulta necessariamente da percepção real que as pessoas e a
sociedade têm da situação actual da Justiça. É mais uma vontade/ desejo/
exigência dos cidadãos que implica para os agentes e profissionais na Justiça
uma extraordinária responsabilidade. A assunção plena dessa responsabilidade
por parte dos magistrados judiciais, dos magistrados do ministério público, dos
advogados, dos funcionários judiciais mas também dos polícias e das forças de
segurança é que irá permitir que tudo o que já está reunido em termos de
investimentos físico, humano e institucional resulte na
administração efectiva da justiça em Cabo Verde.
Os agentes da
Justiça em exercício actualmente em Cabo Verde devem ter a
consciência do papel histórico que deles se espera na construção da democracia
e do Estado de Direito, uma tarefa que nos ocupa a todos há menos de15 anos . A
eles cabe, designadamente, criar uma cultura do exercício da
magistratura na democracia , cabe afirmar os tribunais como orgãos de soberania
e cabe desenvolver um profissionalismo caracterizado por celeridade,
previsibilidade e isenção na resposta às demandas de justiça, um
profissionalismo que tranquiliza a sociedade.
Os cidadãos não
têm a possibilidade de influenciar a postura dos tribunais com a alteração periódica
dos seus titulares através de eleições como acontece com os outros orgãos de
soberania designadamente o presidente da República e a Assembleia Nacional.
Este facto que revela a ausência de uma legitimidade democrática directa dos
titulares dos órgãos soberania que são tribunais põe um especial fardo sobre os
magistrados. A sua legitimidade em administrar a justiça em nome do povo advém
da aderência total das suas decisões ao espírito e à letra da Constituição e da
defesa atenta do se designa de due process of law.
Sr. Presidente,
senhores membros do Governo colegas deputados
A construção do
edifício institucional da Justiça seguindo o plano da Constituição de 92 e
acompanhado da ética e do ethos que lhe está subjacente e que credibiliza a
administração da Justiça depara-se com dificuldades multiplas que importa
confrontar de forma decidida:
Primeiro temos que
aceitar que o nosso ponto de partida para a construção do estado de Direito não
é zero mas sim abaixo de zero. A LOPE, a Lei da Organização Política do Estado
promulgada em 1975 e a Constituição de 1980 não são percursores ou pontos
evolutivos de uma cultura ou filosofia judicial que desembocaria na
Constituição de 1992. A experiência da justiça no regime anterior com
a subordinação dos juízes aos objectivos do partido único, as suas nomeações
dependentes do governo, a total falta de autonomia do ministério público e as
severas restrições do direitos fundamentais dos cidadãos, designadamente
direitos de defesa está nas antípodas do Estado de Direito democrático que
estamos hoje a construir. Não se compreende pois as referências de SEXCIA o sr.
Presidente da República na abertura do ano judicial em relação a
esta matéria. Do Presidente da Republica se espera o realce da natureza distinta
da filosofia judicial própria do estado de direito e um incentivo permanente
para a emergência de atitude, postura e mentalidade consentâneas com os seus
parâmetros e elementos fundamentais.
Segundo, a
democracia e a sociedade livre e aberta põem especial desafio aos
orgãos que administram a justiça e cuidam da preservação da ordem e da
segurança das pessoas. Exigem uma adequação permanente a novos desafios e
níveis crescentes de institucionalização para que em respeito permanente para
com os direitos fundamentais dos cidadãos e em aderência aos princípios e
valores da Constituição sejam efectivos. Ou seja, não é a Constituição que deve
mudar para suprir as insuficiências da polícia, dos centros prisionais, do
ministério público ou dos tribunais mas sim essas instituições é que devem se
colocar à altura das exigências constitucionais no importante e delicado
serviço que prestam à comunidade e à república.
Terceiro, a
efectividade da administração da Justiça depende ainda de dois factores
importantes: condições adequadas para o desenvolvimento da carreira,
remuneração justa e garantia especial de segurança. A indexação dos
vencimentos dos magistrados judiciais enquanto titulares de orgãos de soberania
aos vencimentos percebidos pelo Presidente da república e o primeiro ministro
cria situações complicadas designadamente de deterioração do nível de vida dos
juízes com consequências em termos de motivação na carreira e diminuição de
independência. Isso acontece porque nós nos ramos legislativos e executivos do sistema
não chegamos a acordo por razões populistas e demagógicas quanto o estado deve
pagar aos titulares de orgãos de poder político. Em relação à segurança, os
disparos contra o procurador Arlindo Figueiredo puseram com especial acuidade a
obrigação do estado em dar a todo o tempo segurança especial aos agentes de
justiça e agir rapidamente e decidamente contra os que se ousarem intimidar a
justiça em cabo verde.
Sr. Presidente,
senhores membros do Governo, colegas deputados
Estamos hoje ainda
nos primórdios de uma longa caminhada para a criação de condições para a
realização de um desejo permanente dos homens: o desejo de justiça. Iniciamos
essa caminhada com os handicaps próprios de um país ainda num nível baixo de
desenvolvimento e com uma experiência negativa e desviante do que constitui de
facto a Justiça. Vivemos por outro lado num mundo cada vez mais globalizado em
que desafios aos fundamentos da sociedade aberta e
liberal mostram-se cada vez mais perigosos e sofisticados. Ameaças
de terrorismo interconectam-se com tráficos de drogas, tráficos de armas,
tráfico de pessoas e branqueamento de capitais no que às vezes
configura uma grande conspiração criminosa com raízes locais e
globais. Neste contexto, o que esperamos dos agentes de
Justiça não é facil mas, em jeito de compensação, tem todos a vantagem e o
privilégio de um dia poderem dizer “estivemos presentes e participamos no
momento de criação do Estado de direito democrático em Cabo Verde”.