Friday, September 5, 2025

Democracia e civismo

 

Democracia e civismo

                                                            Novo Jornal de Cabo Verde, ……1995

 

 

Democracia e Civismo

 

                                                                                      Humberto Cardoso

                                                                                                                                                20/1/95              

 

                As comunidades  politico-nacionais, actualmente em processo de implantação e consolidação de instituições democráticas, confrontam-se com a formidável tarefa de enraizamento das novas instituições num tecido social historicamente pouco adequado e recentemente depauperado por anos de regime de inspiração totalitária. O futuro das jovens democracias está intimamente ligado ao sucesso que almejarem atingir nessa tarefa.

            A instauração de um sistema político e a sua estabilidade e continuidade não dependem somente do grau de coerência, funcionalidade e complexidade intrinsecos ao modelo adoptado e que é consagrado na Constituição e nas demais leis. Depende também, e fundamentalmente, das características específicas da sociedade de onde as novas instituições deverão emergir, nomeadamente do seu grau de homogeneidade etnica e linguística , da sua história, passada e recente, do seu nível de desenvolvimento económico e das suas tradições cívicas.

            O confronto entre o modelo e a realidade social, que se segue imediatamente à adopção da nova ordem política, revela-se como crucial para as novas instituções porquanto, do fenómeno de interacção que daí resulta, ou se constata um crescente e aprofundado processo de institucionalização ou, pelo contrário, se cede à tentação de  subversão dos valores, principios e normas que as definem.

 

            A democracia pressupõe uma comunidade de homens livres: uma comunidade que garanta a liberdade de actuação e expressão individual de todos e cada um em fazer avançar os seus interesses, que ofereça oportunidades iguais de realização e que se assegure de que as contribuições de indivíduos e grupos, independentemente do seu conteúdo explicito imediato, resultam, em última instância, na definição e salvaguarda do bem comum ou do interesse público. A realização deste último objectivo é essencial para a manutenção e reprodução da comunidade e, simultâneamente, constitui a razão de ser e a base da legitimidade das instituições.

 

            De facto, as instituições, enquanto organizações imbuídas de valores e princípios, socialmente aceites e legitimidados, e regidas por procedimentos de todos conhecidos, são o veiculo de articulação e realização do interesse público e justificam a percepção geral de uma comunhão de objectivos, indispensável à existência da própria comunidade. A defesa das instituições afigura-se, portanto, como fundamental à persistência de uma ordem social e política: as instituições incarnam o consenso geral quanto aos parâmetros básicos da existência da comunidade e quanto à direcção a se lhe imprimir no futuro;  também,  pelos processos e procedimentos que implicam, fornecem o suporte básico para a renovação da confiança mútua entre os seus membros.

 

            O drama de muitos países actualmente construindo a democracia tem como pano de fundo uma história passada de regimes ditatoriais ou autoritários, que excluía a grande maioria de uma actividade livre e criativa nas esferas socio-políticas; e uma história recente de regimes de inspiração totalitária que, embora se suportasse num envolvimento massivo da população, subordinava essa participação aos designios de uma ideologia e do partido único que a incarnava. O passado remoto criou laços sociais altamente hierarquizados e verticalmente estruturados, abrindo o caminho para o desenvolvimento de padrões de exploração e dependência que resultavam, de um lado, em clientelismos e patronagens violentamente impostos e mantidos, e por outro, numa passividade social inibidora de qualquer iniciativa autónoma que fugisse a esses padrões.

 

            A elevação do nível e abrangência da participação política que acompanhou a implantação do regime totalitário no passado recente não dissolveu esses laços; pelo contrário, imprimiu-lhes um novo conteúdo. O tipo de mobilidade social  que protogonizou, ditado pelas necessidades e procedimentos do partido único, generalizou a ambição do poder de uns sobre os outros, atomizando ainda mais a sociedade e espalhando a desconfiança entre os seus membros. A ascensão de cada indivíduo suportava-se na sua disponibilidade em aceitar patronos e simultâneamente em bloquear ou escamotear, sem se deixar deter por considerações éticas ou outras, o avanço do colega do lado. A presença ubíqua da polícia política garantia que assim fosse ao tornar vulnerável ao seu ataque todo e qualquer indivíduo imprevidente.

 

            Em tais ambientes socio-políticos, o estabelecimento de laços horizontais entre os cidadãos são quase impossíveis: as associações profissionais, económicas ou culturais ou de qualquer outro género são raras, o espírito de pertença à uma comunidade é inexistente e os hábitos e costumes cívicos brilham pela sua ausência. Em contrapartida, floresce a desconfiança do outrem, a violência é insistentemente chamada para resolver questiúnculas e o património comum é dilapidado, abusado ou utilizado em benefício de interesses privados. 

 

            A sociedade civil não tem, nessas circustâncias, uma existência real. O indivíduo sente-se totalmente impotente perante forças externas às quais deve subordinar-se ou, então, recusando, sujeitar-se ao ostracismo com todas as suas consequências. As relações sociais são viciadas pela desconfiança, pela falta de solidariedade e pelo que alguns autores chamam de “amoral familismo”, ou seja, o não reconhecimento de laços morais para além do círculo familiar. A noção do interesse público é inexistente porque as instituições são essencialmente veículos de interesses privados bem demarcados.

 

            Provérbios de Calabra, uma região do Sul da Itália, ilustram bem o sentimento  geral quando, em consequência,  a desconfiança mútua se instala numa sociedade:

todo aquele que se comporta honestamente terá um fim miserável

maldito é aquele que confia noutrem

não emprestes nada, não ofereças nada, não faças nada de bom, pois acabará por voltar contra ti.

Cada um pensa em si próprio e engana o colega ao lado

Quando vires a casa do vizinho em chamas, leve água para a tua casa

           

            O sucesso da democracia enquanto sistema político é indissociável do grau de maturação da sociedade civil. Não é por acaso que vingou, sem grandes sobressaltos, nos Estados Unidos da América enquanto que na grande maioria dos países da América Latina, com essencialmente o mesmo modelo constitucional, o processo democrático, durante mais de um século, foi entrecortado por golpes de Estado, ditaduras e regimes militares.

 

            Nos EUA, as instituições criadas após a independência enraizaram-se rapidamente num tecido social altamente complexificado pela profusão de relações horizontais entre os cidadãos que indiciavam um elevado nível de consciência cívica. Na América Latina, onde as tradições em termos de relação social privilegiavam relações verticais e hierarquizadas, as instituições acabaram por ceder face à pressão de interesses de grupos, designadamente,  económicos e militares. 

 

            Comentando a realidade social dos Estados Unidos nas primeiras décadas após a Revolução Americana, Alexis deTocqueville disse: “Americanos de todas as idades e de todos quadrantes da vida e de todos os tipos estão permanentemente constituindo associações. Não somente associações de carácter comercial e industrial como também outras de todos os tipos: religiosas e morais, sérias e fúteis, muito abrangentes e muito limitadas, enormes e extremamente pequenas.. Deste modo, o país mais democrático do mundo elevou à mais alta perfeição a arte de procura em comum dos objectos de desejos colectivos e aplicou a nova técnica ao maior número de propósitos”[1].

 

            Em relação à América Latina, um observador notou o seguinte: “A extrema dureza do regime militar ou a multifacetada intriga maquievélica têm sido as duas máscaras da política argentina desde de 1930. As máscaras, infelizmente, não disfarçam a realidade - são de facto a realidade da situação de fraqueza do Estado argentino, uma debilidade proveniente de várias causas fundamentais... O Estado não está firmemente estabelecido como o último árbitro da vida pública. Outras instituições, competindo pela lealdade dos homens, permitem elevados graus de protecção face às directivas do Estado”. 

 

.           O contraste entre essas duas américas quanto à performance das instituições democráticas em ambientes sociais diferentes e com tradições cívicas diametralmente opostas podem-se verificar dentro de um mesmo espaço nacional. O exemplo da Itália é esclarecedor a esse respeito.

 

            A história díspare seguida pelas regiões norte e sul da Itália desde dos tempos medievais possibilitou o surgimento de um elevado grau de espírito associativo e de espírito comunitário no norte enquanto o sul ficava amarrado a regimes autoritários e a sistemas de clientelismo e a familismos. No norte proliferam as associações e cooperativas que fazem da Itália um país único no mundo do cooperativismo, No sul, pelo contrário, “(..) os indivíduos vêem a clientela como o remédio específico para a sociedade desconjuntada. As clientelas são as únicas associações que mostram uma real energia operativa na sociedade civil que tem sido dividida no seu seio ao longo dos séculos”[2].

 

            Essa disparidade de história e de tradições reflecte-se modernamente na performance das instituições democráticas regionais. As comunidades do norte registam o maior sucesso. No sul, apesar do progresso verificado, essas instituições confrontam-se ainda com muitos problemas. Isso não é muito diferente do que se passa nas duas américas, uma bebendo nas tradições associativas da Inglaterra dos Tudor e a outra reproduzindo a forma de estruturação social medieval dos países ibéricos.

 

            Outros factores têm sido avançados por estudiosos para explicar o sucesso na implantação das instituições democráticas, nomeadamente, o nível de desenvolvimento económico, a estabilidade social e a educação.

 

.    O nível de desenvolvimento económico parece ser de grande importância, considerando que, empiricamente, se pode constatar que a democracia tem sido bem sucedida e estável precisamente nos países desenvolvidos. Realmente, um desenvolvimento sustentado da economia diminui as cargas sociais, públicas e privadas, afecta positivamente o nível de vida da população e facilita uma certa acomodação de todos. A classe média expande-se e a sociedade fica menos sujeita a extremismos tanto da esquerda como da direita. O crescente bem-estar da classe média, suportado no cumprimento das normas e procedimentos existentes, torna-a no baluarte da defesa das regras do jogo,  e, portanto, das instituições. O caso da democracia indiana, no entanto, com um nível razoável de institucionalização mas com uma economia ainda em desenvolvimento, destoa da correlação que, aparentemente, existe entre o nível de desenvolvimento económico e a performance das instituições democráticas.

.    A estabilidade social, porque presumivelmente baseada na existência de um elevado grau de consenso quanto às metas e quanto as vias para as atingir, apresenta-se com um factor favorável ao desenvolvimento das instituições democráticas. A realidade, porém, não e tão linear porque: primeiro, o processo de democratização, ao elevar súbitamente o grau de participação política na sociedade, cria tensões inesperadas, aumenta o grau de competição das forças sociais e condiciona-se a aceitar os “inputs”de todos na definição das metas a atingir; e segundo,  é às  instituições recém-criadas que cabe a tarefa de servir de veículo às disparidades de opinião e de interesses da sociedade e articula-las em termos do interesse público. A relação, pretendida entre estabilidade social e desenvolvimento institucional, só pode ser de natureza dialéctica: a sua interacção desencadeia um processo evolutivo, eivado de contradições, que, paulatinamente, conduz à criação de um ambiente de maior harmonização e moderação das forças políticas e sociais, baseado no reconhecimento do interesse comum e das vias e formas de o atingir.

.    A educação porque um elevado nível de escolaridade permite o conhecimento mais profundo das normas e procedimentos estabelecidos e uma compreensão mais clara do papel e necessidade das instituições; além disso, aumenta grandemente o número e a qualidade de potenciais candidatos a integra-las e/ou a dirigi-las. Não é evidente, contudo, que o nível de escolaridade tenha um efeito tão marcante em tornar indíviduos mais sociáveis e intervenientes na procura do bem comum. Em muitas situações, a elevação brusca da escolarização abre avenidas de mobilidade social até o momento não sonhadas por muitos, particularmente os originários dos estratos sociais mais baixos. O resultado imediato é, para uma parte desses, o surgimento de uma ambição insaciável e imediatista acompanhada de um sentimento fortemente reactivo e perverso em relação à  sua origem. O “vale tudo”e um egoísmo assustador constituem oleitmotiv da sua intervenção social.    

 

            Esses factores, embora importantes, não são determinantes. Uma complexa dialéctica parece existir entre eles e o factor nível cívico da comunidade, revelando-se  este último como central e primordial ao estabelecimento de um círculo virtuoso que, ao longo do tempo, conduza a uma maior institucionalização. 

 

            Robert D. Putnam, na sua obra “Making Democracy Work”, explicita as características de uma comunidade cívica:

.    Engajamento cívico. Segundo ele, “cidadania numa comunidade cívica é marcada, em primeiro lugar, por uma activa participação nos assuntos públicos”. Acrescenta ainda que “cidadãos numa comunidade cívica, embora não sendo santos altruístas, vêem o domínio público como algo que ultrapassa um simples campo de batalha para a realizaçào dos seus interesses pessoais”[3]. Sobre este mesmo assunto, Tocqueville, há mais de um século disse que “na comunidade cívica, os cidadãos perseguem um interesse próprio adequadamente compreendido, ou seja, um interesse definido no contexto das necessidades públicas gerais, (..) um interesse próprio atento aos interesses dos outros”[4].

.    Igualdade política. Para Putnam “cidadania numa comunidade cívica implica direitos e obrigações iguais para todos. Tal comunidade está ligada por relações horizontais de reciprocidade e cooperação e não por relações verticais de autoridade e dependência. (..) Líderes.. devem ver-se como responsáveis perante os seus concidadãos. Tanto o poder absoluto como a ausência de poder podem corromper, na medida em que ambos favorecem um sentido de irresponsabilidade”.

3.  Solidariedade, confiança e tolerância. Putnam considera que os “cidadãos numa comunidade cívica, em geral, são mais do que activos, orientados pelo interesse público e iguais. Os cidadaos virtuosos são prestáveis e confiam uns nos outros mesmo quando discordam em matérias de substância. A comunidade cívica não é despida de conflitos pois os cidadão manifestam pontos de vistas muito próprios sobre os assuntos públicos, mas são tolerantes em relação aos seus opositores”. 

.    Associações: as estruturas sociais de cooperação. Referindo-se às associações, esse cientista político, diz que “(...)contribuem para a efectividade e a estabilidade do governo democrático por causa dos seus efeitos internos nos membros  e os efeitos externos na comunidade política. Internamente, a associação inculca nos seus membros hábitos de cooperação, de solidariedade e de interesse público. Externamente, a associação conduz à articulação dos interesses e à sua agregação que quando situadas numa rede de associações secundárias contribuem para uma efectiva colaboração social”.

             

            A constituição de uma comunidade cívica revela-se, portanto, como de importância fundamental para o sucesso da implantação e consolidação das instituições democráticas. Essa tarefa, por envolver a todos, não admite pretensões de exclusividade nem tão pouco a atitude de colocar-se fora dela e exigir resultados de outrem. Mas para que seja realizada com sucesso, é imperativo que colectivamente se reconheça o ponto de partida, ou seja, o estado das relações cívicas no momento. Feito isso, torna-se, então, possível  desenvolver estratégias, metodologias e acções concretas para uma intervençao dirigida, de forma a criar as condições propícias ao florescimento de posturas e cívicas, com especial atenção para as novas gerações.

 

            Neste particular, é de realçar a contribuição central, nomeadamente, das famílias, das estruturas educacionais do país e dos “media” para um processo de socialização orientada no sentido cívico. Das instituições políticas cuja perenidade, sustentabilidade e efectividade dependem do grau cívico atingido pela comunidade, e ainda dos seus dirigentes de momento, é de se exigir, por outro lado, que manifestem a visão necessária para absorverem e potenciarem os “inputs”da sociedade que as lança a níveis crescentes de institucionalização, descartando completamente os paroquialismos, os clientelismos e as ambições desmedidas ainda presentes, e, em alguns casos, extremamente agressivos nas suas manifestações..

 

            Dissertando sobre esse papel das instituições, Samuel Huntington, escreveu: “Instituições políticas têm dimensões tanto morais como estruturais. Uma sociedade com instituições políticas frágeis não se mostra com a capacidade de travar os excessos dos desejos pessoais e paroquiais. (..) Moralidade requer confiança; confiança involve previsibilidade; e previsibilidade exige padrões de comportamento regulamentadas e institucionalizadas. Sem instituições políticas fortes, a sociedade fica sem os meios de definir e de realizar os seus interesses comuns”[5]. 

 

            Ouve-se, aqui e acolá,  muitos apelos para o resurgimento da sociedade civil e para a criação de uma cultura democrática. Isso parece nobre quando visto fora do contexto em que são lançados. De facto, na maior parte dos casos, trata-se simplesmente de mais um galhardete trocado entre as forças políticas em que uns acusam os outros de serem anti-democráticos. O problema real de ausência dessa tal cultura democrática e de uma inércia confrangedora da sociedade civil é ignorado ou contornado em favor de interesses políticos imediatos.

 

            Assim, em vez de acções concretas e realistas para elevar o nível de maturação e de participação política da comunidade, multiplicam-se as tentativas de utilização abusiva das instituições. O objectivo é reorienta-las para servir interesses particulares, sem qualquer preocupação para os efeitos nefastos que isso tem sobre as matérias que se assumiu, primeiramente, como bandeira.

 

            Um outro efeito que isso tem é a sugestão de que a desejável intensificação da  institucionalização é tarefa essencialmente das forças políticas e, particularmente, da força política no governo. Nada mais falso. A tarefa é de todos globalmente, designadamente de cada cidadão que deve ter consciência exacta de que as organizações com alguma força e protogonismo na sociedade, incluindo as forças políticas, são as mais prováveis de apresentar as características de clientelismo e patronagem que se procura eliminar pela introdução de uma consciência e uma prática cívica.  

 

            Desta constatação não se deve, porém, retirar a ideia de que essas organizações devem ser eliminadas. Pelo contrário, devem ser imersas numa rede apertada de outras organizações e associações de modo a esbater completamente as formas ainda nelas presentes e que são reminescentes de um periodo onde clentelismos, amiguismos e patronagem constituíam a norma.

 

            Do sucesso que se atingir nesse envolvimento dependerá o futuro da democracia e dele ainda poder-se-á retirar a esperança que regras de convivência, envolvendo a tolerância e a solidariedade e o sentido do interesse comum, se tornarão de facto cultura.

 

 



[1]  Tocqueville, Democracy in America, pgs. 513-514

[2] Pasquale Turiello, Governo e governati in Italia, citado por Robert Putnam in “Making Democracy Work”

[3] Robert D. Putnam, Making Democracy Work

[4] Alexis de Tocqueville, ibid..   

 

[5] Samuel Huntington, Political Order in Changing Societies, pg 24

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